O cubo, a cubana e o cubismo

Caique Lisboa

Bisbilhotando a linha do tempo do facebook fui confrontado por uma reportagem sobre as condições de moradia dos cidadãos do importante centro financeiro chinês: Hong Kong. A notícia tomada por ilustrações dissecava as habitações de espaços minúsculos e sem divisórias onde os inúmeros apartamentos pareciam verdadeiros cubos. Inevitavelmente, a leitura transbordou uma sensação claustrofóbica e não só dialogou com os limites cartesianos do cômodo, mas sim com as condições da existência humana. A sensação de aperto espacial se fez presente, pois nada é mais atual do que as restrições que zelam para a nossa sobrevivência, e talvez seja conivente considerar que, atualmente, todos nós estamos vivendo em cubos, que limitam nossa capacidade de expressão baseado nos moldes antigos de socialização. Ser obrigado a ressignificar a rotina para fazer sentido a continuidade das ações faz parte de um processo que pondera a observação para as mínimas coisas. Antes tudo era engolido pela efervescente dinâmica, que relativizava as raízes do conforto tornando o lar apenas um adereço de um pequeno intervalo do dia, pois tudo se somatizava nas ruas. Afinal, o mundo simbólico é construído pela interação cotidiana e o que nos sobra quando é tirado isso?

Em uma dessas noites quentes que abatem pelo cansaço, me levanto da cama assustado por um barulho que ecoa por todos os lados encorpado por gritos de protesto, automaticamente levado pela curiosidade corro em uma velocidade absurda para a maior janela do apartamento no interesse de ampliar o meu campo de visão. No primeiro instante capito inúmeros braços estendidos batendo panelas em garfos e colheres de pau, além das continuas bocas que proferiam insatisfações como: – “Estão nos matando”. O manifesto questionava as negligências no enfrentamento da pandemia. Tentando fugir da minha reação embaraçada proveniente da mudança repentina da calmaria para o êxtase direciono meu olhar para a janela de frente a minha e enxergo uma mulher usando apenas um apito, intrigado sabia que o ato de mirar um vizinho faz perder a privacidade das janelas transparentes. Bastou dela um gesto convidativo com a mão para me integrar a reivindicação, sem conhecer intimamente nenhum integrante. O efeito manada durou cinco minutos, tempo suficiente para arrepiar os pelos e borbulhar o sangue provando que na solidão humana restava expressão diante da insatisfação política. Depois do curto contato do panelaço, eu precisava interpelar quem se ousava a me fazer um convite, nem que fosse para iniciar um papo sobre as motivações que ajudavam a encarar os tempos difíceis. Ali se criava uma relação intima para compartilhar os anseios de forma fidedigna.

Fascinado pela algazarra coletiva e o tom carnavalesco da manifestação nas varandas, fui ludibriado e pouco me atentei a figura que se projetava na minha frente. Com a retirada dos batuques improvisados feitos de utensílios domésticos, o ar foi tomado pela entonação do jornal na televisão e o prédio vizinho de paredes gélidas contrastou uma mulher de blusa vermelha, a mesma cor da identidade que pulsa nas veias. Guardando a minha essência de jovem falastrão que tem muito a compartilhar, pousei no espaço de ouvinte da experiência alheia. Nos acomodamos nas nossas condições, sendo assim sentei no sofá e apoiei os meus braços no batente da janela, ela continuou em pé. Cheio de preceitos na espera de comentários esculpidos por raiva das políticas governamentais fui surpreendido por falas insistentes, ela não parava de falar sobre Cuba. Era uma mulher cubana de alma e de coração. Em longos minutos relatou os anos de estudo que se dedicou a entender a cultura do país e como foi satisfatória a sua viagem para lá.

Intrigado com aquele relato, paralelamente, mergulhei na reflexão do imaginário singular e quais eram os motivos da fé em uma terra tão distante da sua. Devo confessar que fui invadido por uma frustração enorme, a cada momento sentia as desigualdades de um país que fez uma mulher confusa e sem escolha de sonhar por uma vida melhor, levando-a acreditar na única referência de existência justa. Abruptamente, ela interrompe a linha de raciocínio e pergunta se eu gostava da obra de Picasso intitulada Guernica. Percebendo a minha incompreensão dos rumos da conversa, ela diz:

– Não existe melhor forma de encorajar um discurso falando do que se tem esperança. Se eu não crer na política e na arte, o que me resta? Minha terra não alimenta minha fé.

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