Retrato de um Brasil relegado à caricatura

Lara Machado

Rachel de Queiroz tinha meros 19 anos quando escreveu “O Quinze”, que se consolidou não só como sua Magnum Opus, mas como um grande clássico da literatura brasileira. E seu sucesso não é à toa: o romance nos aproxima da morte cuja ronda desola milhões de brasileiros que vivem na beira do precipício da fome, sem deixar de abordar as chagas sentimentais que a distância e a solidão causam. Tudo capturado com os olhos jornalísticos da autora e registrado com uma escrita quase factual, mas recheada de poesia. Além disso, a solidão, a falta de perspectiva, a angústia e a impotência assolam todos os personagens e todos os leitores que se compadecem e se identificam com a trama. Mas o principal legado de “O Quinze” está na capacidade de retratar um Brasil que teimamos em caricaturar e, assim, enterrar nas profundezas de nossas apatias. 

O livro escrito em 1930 propõe, e cumpre com uma delicadeza tristonha, a missão de mostrar os impactos da seca de 1915 na vida da estudante Conceição, do vaqueiro Vicente, e da família retirante de Chico Bento sem deixar de ser panorâmico e universal. Diante de Conceição vê-se a pobreza sertaneja afugentada na capital, com Vicente percebe-se a inutilidade das posses diante dos entraves da seca, com Chico Bento, Cordulina e seus filhos, Rachel coloca o leitor numa estrada hostil à vida. “O Quinze” ciceroneia um passeio enlutado pelo interior de um Ceará, tomado como símbolo das entranhas do Brasil, ornado pelas rezes caídas, pelos retirantes sucumbidos e pelas almas atordoadas de tanta miséria.

É justamente a tônica racionalmente humana que permeia as descrições dos rastros da seca que torna o olhar de Rachel de Queiroz tão embotado de realidade. Se há uma destreza poética ímpar na escolha das palavras, não é por mero efeito estético: a autora comove porque foca nos acontecimentos sem a pretensão de ser definitiva; propõe o debate ao mesmo tempo que empresta seus olhos de originária do Quixadá para ver o Brasil que acontece desde “O Quinze” e segue atual. 

A autora, que sempre se colocou como jornalista profissional em detrimento do papel de escritora, assume também um caráter denunciativo no seu romance. Por isso, a leitura de “O Quinze” não fica completa quando não se leva em conta o contexto em que foi escrito ou quando se esquece o posicionamento da jornalista. Rachel de Queiroz, como boa representante da segunda etapa do modernismo, explicita os problemas econômicos do Nordeste, o drama dos retirantes e a exploração do povo num sistema social injusto em meio a um cenário histórico perpassado pela crise econômica, pelo tenentismo liberal, pelas oligarquias regionais e pela política varguista. No entanto, a maior ênfase está nesses dois últimos fatores.

As oligarquias, muito presentes na narrativa através do sutil sistema de apadrinhamento, é mostrado com uma estrutura social que torna os trabalhadores rurais mais vulneráveis e dependentes da boa vontade dos donos de terra e dos “doutores”. Mas a autora não entrega uma crítica unívoca. Chico Bento e sua família conseguem sobreviver na árdua trajetória que traçam pela ajuda daqueles que poderiam ser facilmente taxados como vilões. Rachel de Queiroz tece um texto com as imbricações da complexidade do real. Nada é tão simples para ter só uma face nessa obra. 

Por outro lado, a política varguista é mais duramente criticada. Na narrativa, a ausência do Estado, que deixa a seca dominar o Ceará e matar de fome e de sede, é contrastada com a propaganda de auxílio aos pobres. São denunciadas a corrupção quase naturalizada, a falta de acesso aos recursos disponibilizados, a vagarosidade do sistema e até mesmo a disposição geográfica do assentamento reservado aos retirantes refugiados nas cidades. Tais assentamentos são chamados de Campos de Concentração por Rachel e acabam por despertar sentimentos ainda mais intensos quando se sabe que, apenas 3 anos depois de escrito “O Quinze”, seria instalado o primeiro campo de concentração nazista.

Além desses aspectos, é impossível ignorar o caráter transgressor da personagem Conceição que representa uma então nova forma de performar a feminilidade apesar de toda pressão social para que ela se casasse e abandonasse os estudos. Estudante dedicada, a jovem tem ideais de cunho feminista – muito embora Rachel de Queiroz de colocasse como opositora do feminismo – e de viés socialista, que são constantemente confrontados com os questionamentos de sua avó, de seu primo e até mesmo com seu desejo de ser mãe.

No entanto, se a principal temática da literatura da seca é a denúncia social, não é só com críticas que primeira mulher a integrar a Academia Brasileira de Letras compõe seu universo quase não ficcional. Há, também, espaço para as relações de solidariedade, de cuidado e de bem querer que amenizam a dureza das caminhadas que se sobrepõem no romance. Nessas camadas, Rachel de Queiroz consegue engajar o sentimento do leitor, para além da leitura meramente racional e política. Tudo isso se constrói com uma narração intimista que borra os limites entre o real e o ficcional, e, à título de exemplo, torna difusa as diferenças entre a vida da supracitada personagem Conceição e a da autora. Até mesmo a inspiração da obra favorece essa indiferenciação, uma vez que a ideia para o livro surgiu da saída de Rachel do Ceará, ao fugir da seca, em direção ao Rio de Janeiro.

Por conta dessas mesclas entre o social, o íntimo, o cotidiano e o drama, “O Quinze” tem jeito de crônica do começo ao fim. Por descrever o que ainda pode acontecer no Brasil miserável que teimamos em esquecer, a obra de Rachel de Queiroz parece imortal. A seca cearense é um cenário que seria facilmente desconectável, afastável, relegável às caricaturas não fosse a agudeza da autora. 

Assim, é impossível ler o romance durante a pandemia que já ceifou 450 mil vidas – até então – e não sentir que todo o sentimento de luto que permeia a trama é a marca de nossos dias. A seca que nos aflige enquanto nação hoje não é a mesma, mas enseja a morte igualmente. As oligarquias mudaram, mas o povo brasileiro é cativo do mercado louvado pelos economistas. As crises políticas não se devem mais ao varguismo, mas o Estado é o mais ausente desde o começo do século atual. O Brasil voltou para o mapa da fome e suas entranhas continuam inóspitas. Poderíamos tentar esquecer dessas chagas que tanto doem sob os dedos que teimam em impedir que elas cicatrizem, conseguiríamos apagar o passado e o presente – o futuro passado – para que ele se repetisse sem fim e sem o amargor da sensação de estagnação se não fossem as histórias como “O Quinze”. Ainda bem que Rachel de Queiroz empresta seus olhos para fazer ver além do pouco que se vê agora e para tirar o Brasil que precisa de alento do esquecimento.

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