Os Homens Que Eu Tive: vanguardismo feminista e suas limitações
Rafaella Paternostro
Em 1973, Tereza Trautman, que então tinha 22 anos, roteirizou, dirigiu e montou o que viria a ser o primeiro longa-metragem ficcional no cinema moderno brasileiro, ou Cinema Novo, dirigido por uma mulher. Após o lançamento, Os Homens Que Eu Tive (1973) foi prontamente censurado pela ditadura militar brasileira, liberado apenas oito anos depois sob o título Os Homens e Eu. Tal censura não partiu apenas de um preceito moralista contra as cenas de nudez e de sexo, como também em oposição à representação da liberdade sexual feminina da obra.
O filme retrata a vida de Pity (Darlene Glória), uma montadora de filmes em um casamento aberto, onde ela e o marido mantêm relações extraconjugais com o consentimento um do outro. Mesmo atravessando diversos relacionamentos, a personagem permanece emocionalmente insatisfeita, até que alcança a plena autonomia sobre sua vida, ao dispensar os homens para realizar algo que só seu.
Assim, não é de se estranhar o movimento reacionário da ditadura militar. Para além da liberdade e autonomia com que Pity conduz a sua sexualidade, sem ser condenada jamais pela narrativa, ao retratar a autorrealização de uma mulher não a partir dos seus relacionamentos afetivos com um homem, mas do seu distanciamento destes, o longa afrontou e subverteu diretamente os valores conservadores do governo de Médici.
A temática feminista se estende ao mostrar o sentimento de posse gerados nos homens que se relacionam com Pity, por mais tranquilos que aparentem ou afirmem estar com o relacionamento não-monogâmico. Ademais, o filme retrata o amor romântico como inconstante e efêmero, em oposição à idealização de uma família ou casal tradicionais, e como consequência, a ânsia universal de sentir-se amada.
Para estes fins, o longa se apresenta não como uma narrativa de grandes ações e reviravoltas, mas como um olhar para a vida de Pity. A intencionalidade se torna clara a partir do distanciamento da câmera para com os personagens e os cortes abruptos entre cenas, que fazem do espectador uma espécie de voyeur de fragmentos do cotidiano da personagem, e Trautman constrói essa narrativa estética com maestria.
Entretanto, é no propósito de ser um olhar para a vida, tanto externa quanto interna, da personagem, que o filme encontra a sua maior falha: a protagonista é mais um artifício narrativo que uma personagem em si. Por se tratar de um roteiro baseado no cotidiano de uma personagem, faz-se necessário colorir a vida interna desta para que o espectador se aproxime emocionalmente da narrativa, e enquanto Pity desenvolve a história e os temas que o longa pretende abordar, este pouco se aprofunda da sua vida interna. Não se conhece a personagem e seus sentimentos para além da temática central, o que traz uma significante distância emocional do espectador para com a história.
Em contraposição, o filme Uma Mulher Sob Influência (1974), de John Cassavetes, também desenvolve a temática de libertação feminina, com semelhante abordagem de representação do cotidiano da protagonista, ainda que mais dramatizado. Contudo, este compreende a vida interna da personagem de Gena Rowlands, sufocada pelas restrições sociais, sem valer-se de um diálogo expositivo, pois faz-se entender pela totalidade narrativa, ao trazer cenas mais diversas para explorar as emoções da personagem. Em Os Homens Que Eu Amei, as cenas de experimentação do mundo pela personagem a enriquecem, porém estas são esparsas.
A princípio, a personagem de Pity estaria na faixa dos 20 anos e seria interpretada pela atriz Leila Diniz, então ícone da liberdade sexual feminina. Com o seu falecimento precoce, foi substituída por Darlene Glória e Trautman adaptou o roteiro para retratar uma mulher mais velha. Entretanto, tais mudanças foram superficiais, e tanto a história quanto a caracterização de Pity apresentam-se afins com as de uma mulher mais jovem, pela impetuosidade e inconsequência na forma de tomar decisões, e o sentimento de estar à deriva e ainda conhecendo o mundo que leva à jornada de autodescoberta. A idealizadora aparenta representar uma experiência próxima à sua, como evidenciado pela escolha da profissão da protagonista, mas lhe falta vivência para retratar intimamente as experiências emocionais de uma mulher mais velha.
Ademais, a individualização de uma narrativa feminista só é possível devido à protagonista apresentar privilégios socioeconômicos, o que limita o teor revolucionário do filme. Outro fator limitante é o fato de Trautman valer-se de movimentos de câmera para as cenas de nudez derivativas de um olhar masculinizado. Ainda que na intenção de os ressignificar, ao utilizar de artifícios semelhantes, a diretora cai na reprodução, ao invés da subversão.
Assim, a impressão que resta é a de que a força de Os Homens Que Eu Tive reside no vanguardismo de sua temática. Quiçá, o filme pudesse marcar o imaginário nacional apesar da censura sofrida, caso arriscasse mais na abordagem feminista e permitisse a Pity uma vida emocional mais rica, para além de um recurso narrativo.
Os Homens Que Eu Tive (Brasil, 1973)
Direção: Tereza Trautman
Roteiro: Tereza Trautman