Mulheres de luta em ação
O impacto das casas de referência contra a violência às mulheres no Brasil e seus desafios.
Semblantes de espanto, sirenes em agitação, tumulto e intensa movimentação: PM invade casa de referência contra a violência às mulheres de forma abrupta no dia 21 de Novembro no Distrito Federal. Thais Oliveira, militante do movimento Olga Benário, é capturada e agredida pela polícia, um cenário de terror é instaurado. Em um vídeo publicado no instagram da casa de referência Ieda Santos Delgado, mostra a cena de uma das coordenadoras sendo atropelada por um carro da administração do Guará durante a desocupação. O movimento afirma em suas redes sociais que “a invasão foi realizada sem autorização judicial, de forma ilegal”.
A fúria policial contra as mulheres, evidencia a maneira como o Estado atua na contradição de barrar iniciativas voltadas a salvar e acolher, de forma devida, essas vidas, sendo que ele deveria, mas não cumpre efetivamente, esse papel. O cenário de desocupações é cada vez mais frequente, e uma de suas principais motivações é a entrega desses espaços para a especulação imobiliária. Catarina Matos, professora e coordenadora da casa Preta Simoa, em Fortaleza, que também sofre com o processo de reintegração de posse, relata a dificuldade de não ter visibilidade do poder público, e também a grande barreira que é não ter o reconhecimento do trabalho que as casas desenvolvem na sociedade.
“Nossas casas são ocupações, e por serem ocupações são espaços de muita resistência. É a lógica do capitalismo, a gente tá ali enfrentando a propriedade privada, então esse é o grande desafio: mexer com a estrutura.”
São diversos os desafios do movimento em permanecer no combate ao feminicídio e violência no Brasil. Sua criação deu-se com o intuito de radicalizar a luta em defesa dos direitos e da vida das mulheres, construindo pautas e combates cotidianos, comenta Indira Xavier, 38 anos, coordenadora nacional do movimento e da primeira casa de referência no Brasil, Tina Martins, localizada em Minas Gerais.
Ainda de acordo com Indira, as ocupações são a ponta de um iceberg de algo que é muito mais profundo. “Então, a nossa luta não se encerra quando nós realizamos as ocupações, ou quando nós atendemos as mulheres, porque a gente precisa desenvolver, lutar e defender uma série de outras medidas que são fundamentais para que de fato o quadro de violência deixe de existir.” Indira participou da fundação do movimento Olga Benário. Ela relata que sempre esteve nos espaços de debates relacionados ao fortalecimento do conjunto das mulheres e das lideranças, mas também na promoção de outras a ocuparem esses espaços.
O movimento iniciou suas ocupações em 2016, acolhendo milhares de vítimas de violência doméstica. Hoje já existem casas de referência em diversas cidades: Porto Alegre, São Paulo, Santo André, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Florianópolis e Mauá. Todas são construídas e mantidas através de doações e muita dedicação das ativistas e apoiadores do movimento.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) o Brasil é o quinto país com maior número de casos de feminicídio. As políticas públicas que visam o combate à violência, em sua maioria, não são eficazes e os profissionais envolvidos nem sempre trabalham adotando atitudes humanizadas que, de fato, acolham essas vítimas.
“A construção dessas casas impacta muito na vida dessas mulheres, porque você passa a ter um atendimento humanizado, de mulher para mulher. Sem que seja um atendimento técnico, em que muitas vezes as mulheres se esbarram quando chegam na delegacia e são vista somente como uma estatística, não sendo acolhidas de verdade, de uma forma humana”, afirma Geovana Ferreira, 23 anos, estudante de história e coordenadora da primeira casa de referência no nordeste, a Preta Zeferina, em Salvador.
Prática de luta cotidiana
Construir uma casa de referência para o enfrentamento da violência contra as mulheres requer muito fortalecimento coletivo. Indira aponta a importância do Estado cumprir seu papel para que haja efetividade e mudança nesse cenário:
“Não queremos ser o Estado, queremos que ele assuma sua responsabilidade, porque a gente luta não só pelas ocupações, a gente luta para que haja política, delegacias 24h com atendimento especializado, creche, emprego e condições das mulheres viverem plenas nessa sociedade.”
Catarina declara a importância e preocupação de cada mulher que constrói o movimento, em se capacitar para atender com qualidade essas mulheres mesmo com diversas dificuldades: “Temos um movimento muito sólido que dá formação pra gente, estudamos os documentos relacionados ao acolhimento e ao enfrentamento.”
“A gente tem uma bagagem política, também, para poder fazer um acolhimento dentro da nossa linha. Mas manter a casa no aspecto da estrutura, lidar com a rotina, os turnos, não ter água, não ter luz, lidar com os assédios dos proprietários e tal, isso que na minha experiência é o grande desafio.” Finaliza.
Fortalecer essas cidadãs em todos os seus aspectos é a forma como Olga Benário aponta como seu principal papel nessa batalha contra o capitalismo e o machismo. Pois a sociedade, infelizmente, cumpre um papel desmobilizador e violento no que tange a emancipação das mulheres. “Como apoiar uma mulher em situação de violência?”, “Quais serviços procurar?”, são perguntas cuja a resposta está na cartilha “violência contra as mulheres, conhecer para combater!”. Um guia rápido para profissionais e lideranças sociais construída pelo movimento.
Ocupar e resistir
Segundo o fórum Brasileiro de violência pública, em 2021, uma mulher foi vítima de feminicídio a cada 7 horas. “A gente surge exatamente para denunciar o desmonte das poucas políticas públicas existentes no pais, que tem mais de cinco mil e quinhentos municípios, e que menos de 10% é atendido com políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres, em um cenário que nós seguimos sendo o quinto pais que mais mata mulheres no mundo.” Aponta Indira, mãe solo e que dedica grande parte da sua vida a contribuir para a construção das casas de referência.
De acordo com ela, as mulheres são capazes de ser poder. “Podemos e devemos ocupar esses espaços de tomadas de decisões, saindo da defensiva e partindo para uma ofensiva, propondo políticas públicas em que nós podemos gerir espaços que salvem as mulheres e que construam uma outra realidade”, completa.
“Não ter uma ocupação do movimento de mulheres Olga Benário, é impedir que centenas de mulheres acessem de forma mais rápida um instrumento da sua tomada de consciência. Porque a emancipação não virá do capitalismo, a gente toma consciência da sociedade que vivemos, nos organizamos e lutamos para que essa realidade seja superada” conclui Catarina Matos, coordenadora da casa Ieda.