“Narciso em Férias” é a memória de um país que esqueceu suas dores

Por José Ivan Neto

O documentário Narciso em Férias, que leva o mesmo nome do capítulo da autobiografia de Caetano, no qual lhe é narrado os acontecimentos do seu tempo em cárcere, traz de forma viva o período da ditadura. Seja na literatura ou no audiovisual, o relato frio e intimista de Caetano, que funciona como um misto de reflexões passadas, traz dores antigas que não foram cicatrizadas.

Com direção de Ricardo Calil e Renato Terra, a musicalidade do gênio da MPB fica em segundo plano. Através de recursos fotográficos que deixam Caetano sempre em primeiro plano, a ausência de cenário em conjunto com o uso de tons frios na composição da imagem traz o sentimento exato que os diretores planejaram: de intimidade e solidão.  Aqui, Narciso se torna um contador de histórias, desde o momento da sua prisão, em dezembro de 68, até a sua soltura em 1969. Caetano passa pelos momentos de tensão e de lucidez (e a falta dela), pelas histórias com Gil, pelos amores com Dedé e pela luta de sua liberdade.

No momento em que é levado, Caetano conta como sentiu as dores de perder a sua vida durante 54 dias. Transferido para uma solitária, sem a companhia de Gilberto Gil, Caetano tinha uma única janela em sua cela, mas que ficava em um nível muito alto para que se pudesse enxergar qualquer vestígio de realidade. Perdido no espaço-tempo, a ficção se mistura com a realidade quando Caetano, ao ler um livro que lhe foi presenteado por Ênio Silveira, começa a ler os jornais que ficavam no chão de sua cela para ter algum resquício do mundo, assim como o protagonista do livro “O Estrangeiro”. Após ser transferido para uma cela em conjunto, Caetano ainda se lembra dos gritos que escutava, das conversas ao pé do ouvido, dos guardas que não sabiam até que ponto ir para torturar.


Dentro do documentário, Caetano também narra alguns momentos de “felicidade”. Quando finalmente ocorre o seu tão esperado encontro com Dedé, graças a um sargento baiano de bom coração, que libera a visita da esposa no quartel, Caetano sente um pouco da realidade, do mundo que havia lá fora. Dedé também é responsável por trazer uma revista com as primeiras fotos da Terra tiradas por satélite. É nesse momento que é possível ver o peso nos olhos de Caetano, quando a produção entrega um exemplar da revista Manchete. A mistura de sentimentos chega sem avisar, e Caetano chega ao ápice da emoção quando se lembra da prisão do soldado que foi tão importante para sua liberdade. A gravação para, Caetano retorna ao som de Hey Jude dos Beatles, prossegue com a música Irene, nome da irmã de Caetano, e volta ao relato.

Quando chega o momento da revelação do motivo de sua prisão, Caetano relê o manuscrito do seu interrogatório. Caetano havia sido acusado de cantar, de forma vexatória, o Hino Nacional no ritmo da Tropicália, por um apresentador da Record. A acusação foi infundada, mas em tempos de ditadura, não houve importância para sua inocência. Já no final do documentário, Caetano conta sobre sua soltura em Salvador. No clímax do documentário, Narciso, que por ironia só acha feio o que não é espelho, se sente fora de si ao não conseguir enxergar o que está no reflexo. “Não é que eu não sabia quem era, eu não sabia o que era aquilo”. “Eu olhava para os quadros, retrato de minha mãe, meu pai, meus irmãos, pra ver se eu voltava a mim e eu não me achava”.

O documentário é finalizado com Terra, música composta por Caetano, que foi inspirada pela foto da revista Manchete, que significou tanto para Caetano naquele momento, algo que ele desejava mais do que tudo: liberdade. Durante o documentário, Caetano ressalva a importância da democracia, de confrontar políticos que flertam com o autoritarismo, dos ideais libertários e da manutenção da sociedade. Narciso em Férias, através de uma história trágica e simbólica, é uma eterna memória do que deveríamos deixar como passado para não acabar com o nosso futuro.