Nathaly Avelino: “Para mim isso demonstra um recado do governo que é ‘não viva de cultura”

Ester Xavier
Foto: Arquivo pessoal
Foto: Arquivo pessoal

Nathaly Avelino, formada em produção cultural pelo Instituto federal do Rio de Janeiro, coordenadora do projeto Coletivo Produtores Culturais, considera o governo, durante a oandemia, mostrou descaso com o setor cultural. Trabalhando na área há mais de 10 anos, Nathaly viu de perto os efeitos catastróficos da pandemia na produção cultural: “O combate à pandemia do governo foi uma piada, e quando tratamos do setor cultural então, ele ficou 100% abandonado”. A produtora afirma a importância da cultura na economia e nas lutas sociais, aborda com cuidado o que pode ser feito para minimizar os danos do isolamento para cultura e como podemos nessa situação adversa refletir sobre a crise da cultura que vem desde antes da pandemia.

 

 

Por que você considera a cultura tão importante e principalmente agora durante a pandemia qual a sua importância?  

Olha eu tenho uma defesa de que a cultura forma a gente, defendo a cultura como uma coisa essencial de fato para o ser humano. Não é secundária, é essencial mesmo, como fomentar a educação, saúde. Tem que andar ali lado a lado da mesma forma, a saúde é tida como uma das coisas mais importantes, um dos principais pilares, está em todos os planos de governo, a cultura também tem que ser priorizada. A gente realmente não tem uma cultura de pensar o quanto isso é importante para nossa formação. Então acho que principalmente agora nesse momento, as pessoas que estavam em casa tiveram noção do quanto o entretenimento é importante para o povo, do quanto deixa nossa cabeça mais tranquila, o quanto esse momento de lazer é uma coisa essencial. Acredito que partir daí a gente vai começar a fazer com que as pessoas compreendam que o nosso trabalho como produtor cultural e a própria cultura em si, o artista, é um conjunto que precisa ser valorizado. Posso estar sendo uma sonhadora, mas realmente acredito na ideia de que a gente precisa lutar para que isso seja visto dessa forma. Acredito que nesse momento agora de pandemia a gente tem muita oportunidade de mostrar o quantos somos importantes na vida. Falo nós somos importantes porque falo de nós produtores culturais, toda a cadeia que trabalha com cultura. Se teve um ponto positivo, é que não ficamos tão invisibilizados. Somos sim invisibilizados pelo governo, fato, como sempre estivemos, mas acho que as campanhas de ajuda nos mostram o tanto de pessoas por trás de uma produção de um show.  Quando fomos privados disso, percebemos o quanto era importante e talvez isso seja um passo. Dependendo de como vamos levar isso daqui para frente, talvez seja um passo para ver a cultura crescer. Colocar a cultura onde tem que realmente estar e onde já esteve um dia e caiu novamente para uma coisa secundáriainfelizmente.

Como você disse, nossa sociedade é extremamente ligada a cultura e então, como repensar as estruturas da nossa sociedade, como racismo, machismo, questões de gênero, a partir da cultura?  

Estamos vivendo um momento louco, muitas coisas têm acontecido e tem sido cada vez mais divulgadas. Tivemos um caso de racismo muito forte que foi o homem negro espancado e morto no Carrefour. Agora um caso relacionado a umas das principais emissoras televisivas, a globo, que é o caso do comediante que assediava as mulheres. Isso são coisas que sempre existiram só que não eram faladas, não tinha a visibilidade que tem hoje. Penso que assim, nós vivemos em um momento que o ódio ele é muito permitido e ele está fortalecido, e é legal você ser racista, ser machista, homofóbico, é algo que faz de você alguém interessante. Acho que isso está muito forte, mas, ao mesmo tempo, também está muito forte a oposição a isso. Não é à toa que temos uma vereadora trans eleita em SP com uma quantidade absurda de votos, uma das mulheres mais votadas, isso é uma resposta a todo esse ódio que tem acontecido. Todas essas pessoas que estão nessa linha de frente política, cultural, de movimentos sociais, essas pessoas que vão fazer com que consigamos reestruturar essa cadeia louca que a gente está vivendo. Na cultura a gente precisa aproveitar exatamente esse momento, que é de fortalecimento das lutas de movimentos. Para poder usar a cultura, de uma forma que ela mostre, o quanto precisamos repensar as estruturas. Isso significa incluir cada vez mais as diferenças nos nossos projetos de todas as formas, desde produção, exemplo contratar uma produtora negra para fazer um projeto sobre negritude, até escolher do que você irá participar, apoiar, escolher lugares que frequenta, porque isso também é um posicionamento. Você ter isso em mente na hora que você vai montar o seu projeto, acho que dessa forma que a gente vai transformar a estrutura. É meio complexo, porque parece meio utópico falar isso “vamos juntar todo mundo e cirandar sermos felizes“, não é assim, vai ser passo de tartaruga mesmo, mas  é assim que a gente vai conseguir. O sistema agrega tudo isso, pega os movimentos sociais que estão acontecendo e vende pra gente novamente, exemplo: vou fazer uma propaganda com mulheres negras e gordas, olha como sou legal”, mesmo que por trás não seja nada disso. O capitalismo é assim, mas acho que podemos aproveitar essa alta para gente de fato apoiar ou fazer projetos que tenham esse viés, porque tem muita gente tentando, e muita gente fazendo a diferença, e a gente tem que ir atrás disso. A cultura tem muito potencial para conseguir fazer essa mudança dentro da cadeia. Dentro do sistema temos muito mais chances do que ficar de fora falando, falando. Não adianta só ler, só falar bonito, escrever, na hora do “vamo vê” você não faz, na hora de se posicionar você não se posiciona, e se posicionar de fato, não só para as pessoas verem, e como trabalhador da cultura temos uma responsabilidade muito grande nisso. 

Geralmente, tem aquele preconceito de “cultura de rico”, “cultura de pobre”, você acha que a pandemia enfatizou ou diminuiu essa ideia? Como?

 Isso é muito além de pandemia, é um preconceito de classe, e ele não vai mudar agora. É um processo muito mais lento, por exemplo, você colocar o funk como uma cultura de pobre, que não é cultura, não é uma coisa a ser valorizada. Não sei se isso teve algum tipo de mudança ou se a pandemia teve alguma interferência nesse pensamento. Na real eu acho que não, porque se a gente parar pra ver a galera que ficou em casa com tempo, que ficou consumindo em casa cultura, é uma galera privilegiada (tirando a parcela dos desempregados), que ficaram confortáveis, então não sei até onde essa galera pensou ‘agora eu posso ver isso porque tá passando aqui’. O que acontece é que o sistema se apropria de uma coisa, “gourmetiza”, torna aquilo algo palpável para quem tem grana. Então ela pega uma coisa que pode ser lucrativa e torna aquilo palpável para elite e a elite consome. A arte periférica no geral só vai ser consumida pela elite quando ela tiver palpável para eles, embelezada, e a cultura da elite dificilmente passou a ser consumida pelas periferias, o acesso ainda é limitado por diversas razões como dinheiro a e até mesmo interesse. Então essa apropriação cultural, ou exclusão ela não foi pensada nessa pandemia, talvez não tenha aumentado, mas com certeza não diminuiu. 

A gente sabe que com a pandemia as lives aumentaram, alguns festivais que eram pagos e presenciais se tornaram online e até mesmo gratuitos, você acredita que isso de certa forma ajudou a democratizar a cultura? 

Olha essa é uma pergunta difícil, por um lado julgo que sim, democratizou porque as pessoas têm muito mais acesso a muita coisa, por outro, muita coisa foi desvalorizada. Aquela sensação de “pra que pagar tanto para ir em um show se estou vendo aqui e está a mesma coisa”,”Olha como é fácil fazer”. Às vezes tenho esse medo, pode ser só um medo meu. Muitas coisas realmente democratizaram, imagina você ter online e gratuito, programas que muita gente não conseguia ir, talvez essas pessoas se sintam mais impelidas a ir quando for presencial. Parando para pensar, até porque temos as questões sociais, democratizou para quem, todo mundo tem esse tipo de acesso? Quem não tinha acesso antes, continuou sem ter acesso. A gente fica muito numa bolha, onde pessoas se interessam por cultura e tem acesso a qualquer momento a esses materiais. Então não sei se é de fato uma democracia. São muitas nuances que tem que ser estudadas, muitos efeitos que só veremos futuramente, muito estudo ainda vai ser feito sobre esse período, então agora é muito cedo para gente falar com certeza sobre algo.

Sobre as obras digitalizadas, livros, pintura, esculturas, que ganharam um espaço nesse momento de isolamento. Você acha que elas serão mais valorizadas depois dessa pandemia? 

Eu acredito que sim, porque como isso ficou mais evidente. A gente passou a consumir, e passou a fazer parte até de um hábito. O consumo de livros, da própria arte, para mim não é a mesma coisa, mas as pessoas vão sim passar a consumir um pouco mais, porque o digital se tornou muito mais presente e acessível na nossa vida. Então, cada vez mais vamos incorporar essas práticas no nosso dia dia. Não irá substituir, mas complementar, depois desse momento o consumo da cultura digital vai ser ainda mais presente. 

Pela lei Aldir Blanc  sancionada em junho, um total de 3 bilhões de reais foi aprovado para um auxílio ao setor cultural durante a pandemia, você acha que esse dinheiro foi o suficiente para iniciativas e manutenção dos setores culturais?

 Não, definitivamente não foi. Vou dar um exemplo aqui do Rio, teve um edital que saiu agora para técnicos de cultura, a pessoa tinha que como contrapartida dar um trabalho em troca como oficina, palestra. A grana que eles ofereceram era de R$ 5 mil, e em cima desse valor eles cobravam o INSS. Assim os técnicos só recebiam de fato R$ 3 mil e pouco, valor muito abaixo perto da perda que a classe cultural teve. O combate a pandemia do governo foi uma piada, e quando tratamos do setor cultural então, ficou 100% abandonado. Foi muita luta da galera que estava na linha de frente política de cultura, e que está tentando desde o começo fazer alguma coisa para no mínimo minimizar os impactos. Para mim isso demonstra um recado do governo que é ‘não viva de cultura’. Você não vai conseguir viver, não vai conseguir comer. É um descaso, porém, esse é o plano de governo desde o início, para cada vez mais vivermos sem cultura. O prejuízo de todo esse tempo que não tivemos suporte nenhum do governo, não se supri com esse auxílio.

Nesse momento que a cultura tem sido menosprezada e sofrido diversos ataques, gostaria de saber qual a relação do desenvolvimento do Brasil (até mesmo econômico) e a cultura? 

Nós precisamos realmente entender a cultura como uma geradora de economia, lucro, como uma das hélices da economia, porque a cultura é um ciclo, e da muita grana para muita gente. Assim como a cultura é essencial para gente como ser humano, ela é essencial também para economia. Um grande exemplo é o carnaval, de como a cultura gera grana, as escolas de samba, o tanto de dinheiro que isso circula, o turismo, isso faz a economia girar. Não só esses grandes exemplos, mas um show menor, um circo que seja, isso já faz circular, então temos que entender sim a cultura como gerador de dinheiro e de empregos, o que faz a economia girar.

Com o isolamento muitas pessoas do meio cultural perderam o emprego, como você acha que será essa reabertura do setor cultural como cinema, museu, e o que pode ser feito para incentivar a geração de empregos?

Poderia ser injetado um dinheiro maior na cultura para manutenção dos centros culturais, para geração de emprego, assim talvez a gente consiga se recuperar.  Acho muito difícil que aconteça esse incentivo, então é torcer para que a lei Blanc dê pelo menos um suporte, para que no retorno termos uma estrutura para crescimento. Para gente se reestruturar, e voltar a gerar emprego, vai demorar, é um projeto de anos, que se inicia na educação. O problema da cultura não começou durante a pandemia, então ele não vai acabar junto com ela.

Quais eventos culturais você achava mais importante antes e agora durante a pandemia? 

Penso que a cultura ela tem que ser gratuita e muito acessível. Para mim evento na rua, produzir cultura na rua, é uma das coisas mais interessantes. Ali você pode embutir qualquer tipo de manifestação cultural, e muitas pessoas vão ver aquilo, então para mim a rua é muito democrática nesse sentido. No isolamento, em casa, o consumo de filmes aumentou muito, então o que a gente pode fazer é ver e fazer filmes que façam a gente pensar, sobre estruturas sociais. Como o cinema é uma das coisas que tem sido mais consumida, através dele a gente tem muita reflexão sobre o fazer cultura. Discutir cultura também acho muito válido, eu e você agora estamos aqui falando e daqui pode sair algo muito legal, uma nova ideia, um projeto, e é disso que estamos precisando.

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