Cabeça e coração

Por Luís Felipe Bispo

O brilho que saltava daqueles olhos vidrados e cansados não escondia o prazer em desvendar o mistério por trás da grande ameaça mundial. O vírus era, de fato, o grande trunfo da China para conquistar o mundo. Eureka! Em frente à tela, aquele coração desgastado e amargurado, agora com toda carência afetiva suprida por uma mensagem de whatsapp, mandava toda energia que podia para as pontas dos dedos pouco habilidosos que deslizavam na tela, espalhando a grande revelação. A bomba chegava aos grupos de forma despretensiosa, no meio de tantos links, mensagens e figurinhas bregas de boa noite. Mas a empolgação lisérgica do velho coração cansado de ser ignorado, fazia com que toda mensagem enviada fosse acompanhada por um áudio com informações rasas, porém ditas com uma convicção invejável (uma combinação explosiva). Era difícil de acreditar, mas aquele coração miserável sentia novamente aquela sensação totalmente irracional e confusa: a paixão.

O quadro era trágico. Justo no momento em que a razão deveria ser a tônica da resolução dos problemas, os seus olhos estavam fechados, olhando para dentro, vidrados no velho coração apaixonado que parecia ter envelhecido sem amadurecer. Ensimesmado, tudo o que podia absorver vinha de si mesmo, como uma espécie de refém das próprias vontades, só concordava com o que contemplava o seu fetiche: “tudo bem, o vírus é real, mas todos nós sabemos que esses veículos de imprensa são extremamente sensacionalistas. Não é isso tudo!”. O coração imaturo batia embriagado de paixão e de cachaça.

Toda noite, antes de dormir, os dedos enferrujados faziam o serviço bélico, despejando granadas carregadas de falta de bom senso em diversas redes sociais. Era um trabalho muito fácil, até mesmo divertido. Ele o fazia enquanto fumava um cigarro (a essa hora, já estava no décimo ou décimo segundo cigarro do dia). Numa dessas noites de trabalho em prol do nada, o seu sossego foi cortado por uma tosse, uma daquelas intensas e alarmantes, diferente das corriqueiras causadas pelos 27 anos de tabagismo. O medo era real e se fazia presente, assim como o vírus, que estava muito perto do coração abalado, mais precisamente nos pulmões.

Com o mal instalado no corpo, a paixão estava em crise. De frente para o abismo que toda paixão acaba se deparando mais cedo ou mais tarde, o teste final: “é amor?”. A resposta veio como um milagre santo, o próprio Messias trazia a novidade: um tratamento precoce, extremamente eficiente, em níveis capazes de superar até a efetividade de uma vacina. Era uma grande descoberta, incrível e sedutora, assim como tantas revelações que emocionaram o velho e desnorteado coração, que se emocionou mais uma vez. As doses das pílulas milagrosas e nenhum acompanhamento médico eram a única saída que aqueles olhos cansados e pequenos conseguiam perceber, pois a sua capacidade cognitiva limitada e o seu fetiche por contradição, o fazia sempre caminhar na corda bamba da ignorância.

O resultado não poderia ser outro. Após quatro semanas de intensa dedicação ao tratamento suicida, o coração atribulado percebia que as suas forças estavam se esgotando. Sentia que estava próximo daquele lugar frio, onde não existem links para fake news e nem gifs pornográficos…naquele momento, nada poderia preencher o vazio do coração. Mesmo com as centenas de notificações que faziam o celular vibrar freneticamente, o silêncio ensurdecedor do seu vácuo existencial era o protagonista do momento, era a trilha sonora daquele fevereiro sem carnaval, era a marcha fúnebre que decretava a sua morte. Esse silêncio foi a última sensação que aquele coração experienciou antes de parar de bater. Tamanha era a solidão do pobre coração falecido, que ninguém sentiu a sua falta, ninguém o procurou, outros já faziam o seu trabalho e sua importância era quase nenhuma em qualquer que fosse o lugar. Morrer foi a melhor solução para o coração que, agora, onde quer que esteja, não sente mais a angústia de, com todas as suas limitações, precisar compreender o mundo.

One thought on “Cabeça e coração

  • 22 julho, 2021 em 11:48
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    Que sensibilidade nas palavras meus caros, um retrato tragicômico da realidade atual através de uma crônica bem elaborada. Parabéns meu consagrado 👏🏿👏🏿👏🏿

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