Lívia Vieira: “ A pandemia transformou o jornalismo”

Malu Sampaio

A professora da oficina de jornalismo digital da Facom acredita que a mudança no jornalismo é muito profunda. Além a digitalização das redações, a possibilidade de algumas não voltarem ao presencial, o modo de fazer entrevista mudou: “É diferente entrevistar alguém fisicamente e entrevistar como a gente está fazendo aqui. Então tem muita coisa que a gente perde abrindo mão desse contato face a face“. Por vídeo chamada, a editora da Farol Jornalismo”, newsletter que reúne novidades do campo, discute ainda o aspecto burguês do fazer-jornalístico: “O jornalismo até hoje é feito para uma elite branca. Você pega um caderno de economia, você não entende”.

Foto: profile Farol Jornalismo

A pandemia colocou os veículos noticiosos em lugar de destaque como fonte de informação séria e apurada. Ainda assim, a credibilidade da imprensa é constantemente posta em xeque inclusive pelo governo federal. Como é que você avalia essa dualidade?

É verdade que a confiança nas notícias e no jornalismo de uma maneira geral tem diminuído ao longo dos anos, várias pesquisas mostram isso. Mas também não é uma coisa só do jornalismo. É uma confiança nas instituições de uma maneira geral: na igreja, na medicina, na ciência. Tanto que se fala que nós vivemos essa era da pós-verdade, ou seja, uma era na qual as pessoas querem só se informar sobre algo que reforce as suas próprias crenças. Ao mesmo tempo, essa pandemia,  em determinado ponto, foi muito benéfica pro jornalismo, porque ela fez com que as pessoas enxergassem, de uma maneira muito clara e que talvez não enxergassem antes, o quanto você estar bem informado é fundamental para a sua sobrevivência e para a tomada de decisões do seu cotidiano. Nessa pandemia nós tínhamos que ligar a TV, ou ler o jornal, para saber se podíamos sair de casa, se tínhamos que usar máscara ou não. Justamente porque nós não conseguimos viver no caos, ninguém consegue. E o jornalismo é o organizador desse caos. Então eu não enxergo exatamente como um paradoxo. Eu enxergo que era uma transformação na sociedade de quebra de confiança nas instituições em geral, não só no jornalista, mas que a pandemia fez com que, pelo menos, no jornalismo isso se transformasse.

No último dia 3 de Maio foi comemorado o dia internacional da liberdade de imprensa e muito se falou sobre a diminuição da liberdade de imprensa em diversos países nos quais o Covid avança. Como é que se explica essa relação? 

  Claro que também não é algo que foi do nada. Essa queda da liberdade de imprensa também já vem sendo observada ao longo dos anos. Por exemplo, no Brasil a gente teve uma queda a partir da eleição do Bolsonaro. Porque não é segredo pra ninguém, e eu não estou nem fazendo uma crítica direta, todo mundo vê isso: ele xinga a imprensa, diz  que a imprensa é inimiga dele, não dá entrevistas. Ele não contribui em nada para a liberdade de imprensa no Brasil. E lá fora também, principalmente os países que têm pouca tradição democrática, infelizmente, como é o Brasil: os governos se viram diante de uma pandemia, de uma questão muito séria e naqueles de perfil mais autoritário, como é o nosso, a tendência foi esconder informação, não ser transparente. Por exemplo, no Brasil teve que ser criado um consórcio de veículos de imprensa para divulgar os dados da pandemia, porque não se podia confiar nos dados do próprio governo. Então, há um clima de hostilidade enorme na atividade profissional, isso tolhe a liberdade de imprensa. Eu acho que um governo admitir que está vivendo uma crise não é fácil, mas os bons governos vão encarar isso de maneira transparente e vão  utilizar a imprensa como um grande aliado.

No mês de fevereiro, grandes veículos de informação divulgaram um informe publicitário que defendia o tratamento precoce de Covid-19. Como jornalista, qual é sua análise sobre isso? 

  Isso eu acho que tá dentro de uma coisa bem mais ampla, que é: a grande maioria do jornalismo que se faz hoje no Brasil, é o jornalismo de empresas.  O jornalismo de grandes empresas de comunicação, cujo modelo de negócio, majoritariamente, ainda é a publicidade. Mas  esse modelo não é único; no Brasil, ele é muito forte. Mas, por exemplo, na Inglaterra, a gente tem a BBC, que é uma empresa pública.  É uma empresa pública porque ela é bancada pelo público, as pessoas pagam uma licença anual e ajudam a bancar a BBC e claro, eles também têm uma verba do governo. Mas uma empresa pública, ela não é uma empresa estatal,  ela não tem que falar só o que o governo quer, ela tem total independência. Então, esse modelo de negócio das empresas jornalísticas, muito baseado na publicidade, faz com que haja uma dependência muito grande dos anunciantes. Se por um lado eu tenho toda a redação, a equipe tem editorial, todo mundo ali empenhado em combater a desinformação e em informar sobre a pandemia, por outro tem o setor comercial que, realmente, é um outro mundo. Realmente, a gente precisa refletir sobre isso internamente. A Folha de S. Paulo fez uma matéria, desmentindo o anúncio. Mas como assim desmentindo o anúncio? Você ganhou dinheiro com esse anúncio, né? E ainda era um anúncio de uma associação de médicos totalmente esquisita. O que deveria ter sido feito é: não só negar a publicação do anúncio, mas investigar quem é essa entidade.

 Foi falta de ética jornalística? 

 Com certeza. Na ética a gente chama isso de conflito de interesses ou de perda de independência editorial, são dois conceitos diferentes. Porque você faz com que, de alguma maneira, o anunciante interfira no conteúdo jornalístico. Isso é muito complicado e é, com certeza, uma discussão ética. O professor Eugênio Bucci diz que toda discussão ética dificilmente se dá entre o que é certo e o que é errado, porque normalmente nós sabemos o que é errado. O que gera o conflito ético é quando eu tenho que escolher entre duas coisas relativamente certas. Nesse caso, os veículos eram proibidos de publicar o anúncio? Não, não eram. Mas é uma discussão ética, uma conduta que pode ser questionada. Cometeram algum crime? Não, tanto que há uma defesa possível, que é a que eles fazem falando sobre liberdade. Mas existe uma discussão que envolve esse dilema entre você publicar uma coisa e seu anunciante falar outra. Você está ganhando dinheiro com desinformação? Desinformação essa que você combate todo dia? Então isso é claramente um conflito ético.

 De acordo com a ONU, atualmente luta-se contra dois vírus: o Covid-19 e a desinformação. Num período de coberturas jornalísticas tão intensas, o que você entende que contribui para isso, principalmente no ambiente digital?

  O ambiente digital, o ecossistema digital, tem, naturalmente, poucas hierarquias. Antes da internet, o jornalismo tinha a primazia da divulgação das informações. A internet veio bagunçar tudo isso. André Lemos e Pierre Levy falam da liberação do polo emissor,  um dos princípios da cibercultura. Então, em um ambiente caótico, com muita gente falando, nós temos um excesso de informação. Foi percebendo-se, por exemplo, que o Youtube é uma plataforma muito potente para que você possa argumentar e passar seus discursos. Então as pessoas que querem deliberadamente passar desinformação criaram um discurso muito facilitado pelo ambiente digital muito algoritmizado e no qual tudo o que é caos e extremismo é mais exibido. Pode-se observar que o discurso é sempre muito parecido: sempre se opõe a imprensa, sempre odeiam os jornalistas, com jargões como “isso a grande mídia não mostra” e a partir disso criou-se um padrão de comunicação justamente para que você desconfie da imprensa e acredite em um desconhecido. Então a internet possibilitou a criação desse ambiente desorganizado, que tem muitos aspectos positivos, como a gente poder se comunicar muito melhor, poder aprender línguas do mundo inteiro, porém existe esse problema da desinformação, que já acontecia antes da internet, mas foi muito potencializado. 

 Ao passo que as redes sociais como Facebook, Twitter e Youtube têm feito revisões em suas diretrizes de compartilhamento de informações, elas também  são terreno fértil para propagação de notícias falsas.  No contexto atual, você acha que as redes vêm como aliadas ou inimigas do jornalismo?  

  As redes sociais podem ser um aliado do jornalismo no sentido da distribuição da informação, porque conseguem fazer o conteúdo jornalístico circular mais facilmente. Mas a dependência do jornalismo em relação às plataformas é extremamente prejudicial e muitos veículos tornaram-se muito dependentes das redes sociais. No entanto, acredito que hoje eles já enxergaram que isso não pode acontecer, tanto que a Folha, por exemplo, saiu do Facebook e alguns movimentos parecidos ocorreram lá fora também, justamente porque os veículos jornalísticos não controlam o que ocorre no Facebook ou no Twitter, são plataformas terceiras. Inclusive não se pode nem confiar nas métricas fornecidas por elas, uma vez que as plataformas não são nada transparentes, não abrem os dados, não dizem como os algoritmos funcionam.  Você estava falando da comunicação dos veículos nas redes sociais. Eu acho que, ao longo da história, o jornalismo errou muito em sua relação com a audiência. Durante muito tempo, justamente pela primazia em relação às informações, os jornalistas meio que ‘cagavam’ para os leitores. Mas hoje, com essa disputa de narrativas, o jornalismo precisa se mostrar relevante e chegar até às pessoas com uma linguagem que seja acessível. O jornalismo até hoje é feito para uma elite branca. Você pega um caderno de economia, você não entende. Então com quem nós estamos querendo nos comunicar? Uma chavinha está virando nesse sentido e na pandemia isso ficou muito claro, por conta do grande desafio de traduzir a informação científica, que é difícil, para o leitor comum. Então hoje é cada vez mais  necessário que o jornalismo se aproxime consiga se conectar com sua audiência de forma que faça sentido, porque o que as fake news fazem é justamente isso: a linguagem é fácil, atraente.

 Com a pandemia, o jornalismo sofreu diversas mudanças, tanto na produção quanto no consumo. Como professora e pesquisadora, o que você notou de mais relevante em relação ao consumo jornalístico?

  Os telejornais aumentaram muito suas audiências, porque, naturalmente, as pessoas ficaram mais em casa, então elas ligaram mais a televisão. O fato de as pessoas terem estado mais em casa realmente mudou esse consumo. Houve, no início da pandemia, uma  queda no consumo de podcasts, porque eles eram muito acessados nos deslocamentos para o trabalho, por exemplo. Mas ao mesmo tempo, houve um aumento muito grande de podcasts relacionados ao exercício físico, à meditação. Então o que passou a ser consumido foi mudando bastante. Em termos de notícias, houve uma grande procura, porque nós estávamos sendo bombardeados por informações e precisávamos dessas informações. Todos os sites de notícias bateram recorde de audiência, tem matéria da Folha de S. Paulo falando sobre isso, do O Globo, então as pessoas começaram realmente a buscar esse tipo de conteúdo.   

 Eu te faço a mesma provocação que a Farol Jornalismo faz em seu slogan: para onde vai o jornalismo? Quais são as mudanças que a pandemia trouxe que, no seu entendimento, vieram para ficar? 

  Eu acho que a pandemia transformou o jornalismo. Eu não sei até que ponto vai ser essa mudança, mas ela é muito profunda. Por exemplo, hoje já se fala que muitas redações não vão mais voltar fisicamente, principalmente as menores, porque viu-se que é possível trabalhar de maneira remota. Essa é uma mudança profunda, porque não se trata só do local de trabalho. O ambiente da redação é extremamente importante para a produção jornalística: o contato com os colegas, as reuniões de pauta, a troca de ideias, o cafézinho, as relações interpessoais, enfim, coisas que o digital não tem. Além disso, os jornalistas relataram mais cansaço, existem até pesquisas sobre isso, afinal de contas, eles trabalham mais. Se deixar, você fica com o computador ligado até de madrugada! Outra coisa que antes as empresas jornalísticas não faziam, mas agora elas estão sendo obrigadas a fazer, é olhar para a saúde mental dos jornalistas. No jornalismo a gente sempre glamourizou muito o perrengue, só que não dá para ser assim. A própria realização da entrevista: é diferente entrevistar alguém fisicamente e entrevistar como a gente está fazendo aqui. Então tem muita coisa que a gente perde abrindo mão desse contato face a face. Isso tudo a gente fala muito na newsletter. A pandemia também acelerou a digitalização das redações, então não só a produção, mas a gestão foi toda digitalizada, e isso é um caminho sem volta. E eu acho bom.

 

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