Dois Estranhos – Um dia que não termina

Antonio Dilson Neto

Em 1993, Bill Murray estrelava o que seria, anos depois, um dos grandes clássicos da Sessão da Tarde: Feitiço do Tempo. No longa, Phil Connors é um arrogante homem do tempo que fica preso num loop temporal, revivendo (sem muitas explicações) o mesmo dia – até que mude de atitudes e comportamento, passe a aproveitar a vida de uma outra forma e torne-se o homem ideal para a sua amada. A premissa de um dia interminável é a mesma de Dois Estranhos, 2021, de Travon Free e Martin Desmond Roe, em que o protagonista revive incessantemente os acontecidos do mesmo dia – também sem explicação dos motivos – mas as similaridades encerram por aí. Enquanto o longa da década de 90 traz uma mensagem repleta de positividade como o Carpe Diem e viver cada momento da vida em sua simplicidade, o vencedor do Oscar de Melhor Curta-Metragem de 2021  nocauteia sua audiência com uma discussão tão profunda quanto atual.

No curta, Carter (Joey Badass), é um jovem negro que, na manhã que sucede um encontro casual, tenta retornar à sua vida normal e acaba preso numa repetição macabra de eventos. Ao sair do prédio onde passou a noite com a garota e esbarrar num transeunte, Carter é abordado de maneira nada amigável pelo policial Merk (Andrew Howard). Após reagir à atuação truculenta da polícia, Carter acaba sendo sufocado e morto pelos oficiais, repetindo diversas vezes uma frase que queimou nos EUA e ecoou no mundo em 2020: “I can’t breathe.” (Eu não consigo respirar).

That’s just the way it is?

É nesse momento que a narrativa assume o tom crítico que norteia o curso chocante dos eventos no roteiro. Vemos a polícia e os transeuntes repetirem exatamente a mesma atuação, não importando as circunstâncias e as atitudes de Carter. Com capuz, sem casaco, com mochila ou sem, sendo agressivo ou absolutamente inerte, o jovem é visto – e abordado – da mesma maneira truculenta e injustificada pelos policiais, enquanto os pedestres, ainda que chocados, filmam o acontecido, gritando que o rapaz nada fez e pedindo calma, mas sem intervir na tragédia que se desenha à sua frente. 

Depois de 99 infrutíferas tentativas e lidando com todo o tipo de violência e morte, Carter se recusa a aceitar o recado de Bruce Hornsby em seus fones – as coisas não serão desse jeito e pronto. Após mais algumas investidas, o jovem consegue relatar ao policial o mistério que os prende no mesmo ciclo sem fim, finalizando com um exausto pedido de socorro: “Why don’t you take me home, man?” (Por que não me leva pra casa?).

Nos diálogos que se seguem, entre o rapaz e o oficial, as questões raciais e as motivações policialescas são postas à mesa, numa exposição crua sobre como as estruturas e as realidades sempre acabam conduzindo a sociedade a repetir os mesmos comportamentos e violências – violentados e violentadores. Com  fotografia arrebatadora e uma trilha sonora marcante, o roteiro de Free conduz a uma reflexão necessária sobre os paralelos e limites entre autoridade e preconceitos, ainda que sem perder um rastro de esperança na superação (mesmo que momentânea) do racismo estrutural.

Presos em um círculo eterno

A uma história grandiosa, segue-se um desfecho à altura. Num espaço de 2 minutos o roteiro traz uma virada de tirar o fôlego, lançando vertiginosamente a audiência num turbilhão de reflexões e emoções. Impossível não assistir ao desenlace de olhos arregalados e boca aberta.

É aqui que o feitiço do tempo de Travon Free rompe completamente as relações com o referente da década de 90. Enquanto o clássico traz um evento metafísico para mudar a vida do protagonista, o episódio em Dois Estranhos é muito mais conectado à realidade – quase que visceralmente. Infelizmente, jovens negros em todo mundo vivem todos os dias os mesmos dias, enfrentando os mesmos inimigos que atuam exatamente da mesma forma e sem explicação, não importando as atitudes, roupas, contexto ou o que estivessem fazendo.

Assim como Carter, os  “dia sem fim” são todos os dias, quando as notícias são exatamente as mesmas, as violências são as mesmas, as justificativas são as mesmas. Só o que muda são as estatísticas das vidas perdidas.

Dois Estranhos é, assim, um memorial poderoso de tantos nomes e histórias que não viveram para repetir mais um dia.

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