Qual a passarela da garota do Rio?

Renata Tanan

Em Abril de 2021, a cantora de funk Anitta, lança um álbum e uma música, ambos denominados “Girl from Rio”. O videoclipe da canção foi gravado no Piscinão de Ramos (área de lazer no Rio de Janeiro) e também no estúdio em que o cenário remete a praia de Ipanema, similarmente ao que foi descrito por Tom Jobim em 1962, na sua famosa canção “Garota de Ipanema”, isto é, ela traz um clássico para os dias atuais, misturando a bossa nova com o funk, a fim de romper alguns estereótipos sobre a mulher carioca. Em primeiro plano, deve-se atentar a desconstrução que a cantora faz da música mais famosa do país; ela apresenta, de maneira franca, as mulheres do Rio de Janeiro, distanciando o público feminino da elite que frequentavam a passarela da praia de Ipanema e apresentando as mulheres reais: pretas, gordas, magras, com direito a estria e celulite.

A canção “Garota de Ipanema”, composta e narrada por Antônio Carlos Jobim e letrada por Vinícius de Moraes, homens brancos, de classe média-alta, marcou a história da cultura brasileira. No ano seguinte, após o seu lançamento, Norman Gimbel redigiu uma versão em língua inglesa que, mais tarde, em 1964, foi gravada por Astrud Gilberto e Stan Getz nos Estados Unidos. Nesse mesmo período, no Brasil, o grande Golpe Militar e a ditadura redesenha a relação das pessoas com a arte, com a suspensão dos direitos políticos dos cidadãos, ou seja, uma drástica redução da liberdade, com grande repressão, censura, exílio e morte. Verdadeiros “Anos de Chumbo”. Vale ressaltar que houve uma grande resistência da imprensa, dos estudantes e principalmente dos artistas; enquanto isso, nessa conjuntura política a indústria cultural brasileira crescia.

Por conseguinte, deve-se atentar também ao estilo musical proposto na época: a bossa nova, o qual nasce na década de 50, marcado pelo período de pós-ditadura de Vargas – momento em que se estabelecia a 3ª Fase do Modernismo ou “Pós-Modernismo” – que se deu com o intuito de alcançar uma independência cultural, e vêm se reinventando até os dias atuais. Nessa altura, Juscelino Kubitschek, considerado um homem jovem e empreendedor, era eleito; começava-se então a discutir sobre liberdade e modernização. Com a chegada de JK somada ao novo momento da cultura nacional viveu-se “50 anos em 5”, isto é, o presidente promoveu um crescimento rápido no país, o que possibilitou o progresso no âmbito econômico, cultural e também industrial.

A bossa nova possibilitou a construção utópica de um país culto e charmoso; a canção de Jobim foi interpretada por inúmeros artistas brasileiros e estrangeiros, como também, esteve presente em diversos filmes. Em depoimento para a revista Manchete, em 1965, Vinícius de Moraes conta como conheceu a garota de Ipanema: enquanto conversavam sentados no bar, viram a jovem, que na época tinha apenas 17 anos, andando distraída, de biquíni, ao caminho do mar, pelas areias quentes da Praia de Ipanema. Tanto na letra brasileira, quanto na versão inglesa, a “Garota de Ipanema” é retratada como uma garota da elite, andando pelas passarelas da praia localizada na zona sul da cidade do Rio de Janeiro; jovem alta, bronzeada, atraente, cheia de graça, exageradamente linda e adorável. Dessa maneira, firmou-se a ideia de que as mulheres brasileiras, em geral, seguem esse padrão.

Nesse sentido, destaca-se a influência internacional sob o gênero que se expandia, o qual proporcionou a mistura do samba com o jazz. Além disso, deve-se frisar que os jovens que constituíam esse movimento eram brancos e de classe média, o que essencialmente determinou o rumo que o estilo seguiu, visto que, tudo isso viabilizou o embranquecimento do samba. Ademais, aponta-se que nessa época vigorava a Lei da vadiagem – nesse período, qualquer negro avistado nas ruas com o pandeiro na mão poderia ser preso, pois, para a sociedade da época, era taxado como bandido. A cultura de uma minoria teve seus símbolos e atores embranquecidos, a fim de deixar o samba mais próximo da música americana, e consequentemente elitizá-la, além de deixa-lá mais comercial, ocasionando no apagamento cultural dos cantores negros e sobretudo uma demarcação hegemônica dos intelectuais brancos.

No clipe, Anitta, considerada a rainha do funk, faz uma correlação entre a “Garota de Ipanema” utopicamente idealizada por Tom Jobim para o Brasil e para o mundo, e apresenta a “Garota do Rio”. Em contraste a isso, ela revela a realidade dos cariocas: os conflitos populares cotidianos, o churrasquinho com farofa e cervejinha junto aos amigos e família, o bronzeamento com fita isolante (fazendo referência ao seu grande hit “Vai malandra”), a paquera, a animação e as adversidades vividas pelo povo brasileiro, visto que, na letra da canção a cantora exibe o descobrimento do seu irmão – fruto de uma traição do seu pai durante o casamento.

Assim sendo, evidencia-se que para alcançar a visibilidade e tornar o funk conhecido e respeitado mundialmente, a cantora enfrentou muitas adversidades. Os paradigmas para emergir em um gênero fortemente rejeitado por, primeiramente, surgir do pobre favelado e apresentar a sua realidade sempre foi alvo de críticas, preconceito e desinteresse para as pessoas de outras realidades (da elite, por exemplo). Em uma palestra em Havard, sobre a criminalização do funk, a cantora pontua que “para você mudar o contexto da letra que está no funk, você tem que mudar o contexto da realidade de quem está nascendo naquela área”. Durante muito tempo, como em outros gêneros musicais, o funk retrata uma linha fortemente machista, cantando sobre a sexualização e objetificação da mulher e do seu corpo, abordando-a como vulgar e descartável. A cantora Anitta surge com o propósito de ressignificar esse conceito, e passa a estabelecer nas letras de suas músicas narrativas que valorizam e enaltecem a diversidade da mulher brasileira.

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