As Penumbras do Anoitecer de San Patrignano

Carlos Eduardo Reis

Violência, epidemias, política, dinheiro, religião, justiça. Tudo isso entra em debate na série documental “SanPa: As Correntes de San Patrignano” estreada na plataforma Netflix em dezembro de 2020. Idealizada por Gianluca Neri e dirigida por Cosima Spender, SanPa consegue resumir os primeiros 15 anos da comunidade de San Patrignano em 5 episódios de 1 hora, a partir de uma extensa pesquisa, 180 horas de entrevistas e 51 filmes recuperados.

Já na primeira cena do filme, observa-se o letreiro: “Itália, fim dos anos 70. A máfia está enchendo as ruas de heroína. A droga de baixo custo ameaça destruir uma geração. Com o governo impotente, um homem quer salvar os usuários. Custe o que custar”. Os cidadãos da província de Rimini relatavam desespero, os jovens estavam se tornando vítimas de uma nova droga semissintética, sendo comumente chamados de “zumbis” que rondavam as ruas da até então tranquila cidade. O Estado já não sabia mais como lidar com os toxicodependentes e as famílias se tornavam vítimas dos furtos dos seus próprios filhos, simplesmente para satisfazerem suas necessidades químicas. Vincenzo Muccioli entra nesse cenário como um salvador. O homem simples, mas com uma extensa rede de contatos, funda a primeira comunidade para tratamento de toxicodependentes na zona rural da cidade, chamando-a de San Patrignano.

O Centro se torna um sucesso, em poucos meses os jovens batiam na porta de Muccioli pedindo ajuda por livre e espontânea vontade, a sociedade o admirava por fazer tanto por aquelas pessoas, assim como as suas famílias e os próprios dependentes. O seu método terapêutico se baseava em “trabalho, regularidade e disciplina”, além da atenção e carinho que ele acreditava ser essencial para as pessoas naquela situação. A mídia, no entanto, desconfiava; corriam boatos sobre o que acontecia na Comunidade, e sobre os métodos de Muccioli. Até o dia em que um dependente foge na madrugada e denuncia para a polícia que ele e alguns outros estavam sendo mantidos acorrentados, a mando de Vincenzo, por dias em um quarto frio e úmido. Isso acontecia toda vez que eles tentavam fugir para a cidade para comprar drogas (o que não era incomum).

Assim se inicia o escândalo das correntes de San Patrignano. A Itália se divide e Muccioli é preso por pouco mais de um mês. No entanto, a própria justiça é influenciada pela opinião popular e, com o crescimento da Comunidade, alguns juízes até enviavam delinquentes à San Patrignano. Quando começa a pandemia da AIDS/HIV o número de pacientes cresce nas filas de SanPa e Muccioli chega a hospedar 1400 pessoas em 1994, se tornando um dos homens mais influentes da Itália e proprietário do primeiro centro de tratamento para toxicodependentes da Europa. Grande parte desse sucesso se deve à ajuda de empresários importantes do país, como Gianmarco e Letizia Moratti, influentes no setor petrolífero e televisivo. O envolvimento de Muccioli com a política e a mídia foi totalmente estratégico, ao passo que a principal investidora do seu projeto, Letizia Moretti, se tornou presidente da rede televisiva estatal italiana RAI. E como afirma Fabio Cantelli (ex-membro e ex-assessor de imprensa de San Patrignano): quem controla a RAI, controla a Itália.

A série está sempre jogando o telespectador para os dois lados da história; ora faz ter empatia pelo protagonista, levando em consideração o bem que ele fez por tantas pessoas, ora faz repudiar algumas de suas atitudes, mostrando que ele também não era quem a sociedade pensava ser. Mas uma coisa é certa: o documentário traz à tona, sobretudo, a discussão sobre a ética nesse tipo de centro terapêutico e o limite do controle dos toxicodependentes. 40 anos depois, a Itália ainda se divide sobre o caso Muccioli, mesmo após outros escândalos envolvendo membros da Comunidade terem vindo a público, como denúncias de violência, alguns suicídios e um homicídio dentro de San Patrignano. Muccioli certamente sabia dos desafios quando decide criar essa Comunidade, ele quis cuidar de uma situação que nem o Estado sabia como. O surgimento das drogas sintéticas e do vírus HIV eram novidades pouco estudadas, por consequência haviam-se muitos preconceitos. Em 2021, as perspectivas são totalmente diferentes.

Os episódios da série são divididos na estrutura clássica “Nascimento, Crescimento, Glória, Declínio e Queda”, tal como as fases de um grande império. Os 21 entrevistados contam diferentes perspectivas da história, a maioria ex-membros de San Patrignano, o que colabora para a veracidade dos relatos. É notável a imparcialidade no desenrolar das cenas, sobretudo quando apareciam simultaneamente em tela entrevistados de ambos os lados, tanto familiares revoltados que perderam queridos dentro da Comunidade, quanto o próprio filho de Vincenzo Muccioli, que afirma com certeza que o pai nunca errou na gestão de San Patrignano. Tal dualidade está assumida inclusive na tradução literal do título da série em italiano “Luzes e Escuridão de San Patrignano”. E a conclusão final não pôde ser diferente: não existe uma única verdade.

Os recursos utilizados pela direção são diversos, desde a sonorização para potencializar a carga dramática nos momentos em que o protagonista estava alterado emocionalmente, até a edição nas cenas finais que retratam a morte lenta e dolorosa de Muccioli, como se ali San Patrignano estivesse morrendo aos poucos também. A obra mostra que, independente do lado que o telespectador toma na trama, a figura do Muccioli foi muito importante para a história desse país e fez diferença na vida de muitas pessoas.

É muito interessante o fato de que a série não possui uma narração, um dos autores, Carlo Gabardini, afirma que isso foi pensado para não dar espaços a julgamentos de parcialidade, assim só se ouve a voz dos entrevistados e das testemunhas nos arquivos resgatados. Gabardini diz ainda que desde o início eles sabiam que não queriam se posicionar, iriam apenas jogar os fatos e o público julgaria com base na sua própria perspectiva. As entrevistas são fortes, são quase confessionais, não se falava de San Patrignano publicamente desde a morte de Vincenzo Muccioli, e essas pessoas estavam com gritos presos na garganta. Elas perguntam à produção o por quê deles terem demorado tanto.

“Esperamos 30 anos por isso, onde vocês estavam?”

Cosima Spender, a diretora, disse que o resultado desse documentário se deve muito aos esforços de montagem, e que estudar mais de 200 horas de arquivos, editar 180 horas de entrevistas, ler todos os livros e matérias de jornal sobre o tema, e analisar os atos de todos os processos meticulosamente, foi como atravessar uma selva com uma machadinha. Tal esforço é admirável, sobretudo quando se transforma em uma grande obra jornalística investigativa, considerada por muitos a melhor produção feita pela Netflix Itália. Com isso, “SanPa: As Correntes de San Patrignano” faz jus à história de Vincenzo Muccioli e seu império, e a conclusão parece estar interligada com os princípios básicos da moral humana, o quão mal um homem precisa ser para algumas pessoas para conseguir fazer o bem a outras.

 

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