Banho nas verduras e a realidade que desejar

Por Antonio Dilson Neto

Abre a porta. Fecha a porta. Desce as escadas. Esqueceu a máscara. Sobe as escadas. Abre a porta. Pega a máscara. Põe a máscara. Fecha a porta. Desce as escadas.

Desce para a rua. Tensão. Caminha até o mercado. Por que essa tensão? Toda vez que abre a porta é isso. Medo, tensão, preocupação. Tudo junto. Pavor do inimigo invisível. Respiração curta e cuidadosa, como se estivesse fugindo. Será que está? Parece que sim. Entra no mercado. Está cheio de gente. Mais tensão. Não encostar em nada. Ficar afastado de todo mundo. Comprar o essencial e sair correndo dali para o espaço aberto. Mal respira. Ombros tensos. Olhar agitado.

Escolhe sem muita atenção as verduras. Cebolas, tomates, chuchus, cenouras e batatas. É o que tem sido possível, anda tudo tão difícil. Pensa no pouco dinheiro, no desemprego, na crise econômica do país. Mais tensão. Esta batata não está boa. Não quer ficar pegando nos vegetais para escolher. Confia na visão. Os óculos embaçam com a respiração debaixo da máscara. “Não aguento mais usar máscara”. As cenouras estão murchas. Não vai leva-las. Olha mais uma vez, não quer voltar num outro dia para buscar.

Toda saída é difícil. Irritante. Não tão boas mesmo, vão ficar pra depois. Vai ao caixa, realizar o pagamento. Que aflição, a moça do caixa com a máscara no queixo. Ela conversa despreocupadamente, pesando os saquinhos com as verduras. Por que ela não fica quieta? Tá falando em cima das compras, e ainda com a máscara fora do lugar. Tensão. Quer sair logo daquele lugarzinho apertado. As verduras são boas, mas é muito pequeno. Paga as compras. Sai para o ar livre.

Ufa. Respira um pouco mais aliviado. A máscara incomoda. Vê um conhecido do outro lado da rua. Seria ele mesmo? De máscara, não dá pra reconhecer mais ninguém. Parece que é, está acenando. Que não queira muito papo. O conhecido atravessa a rua e cumprimenta alegremente, esticando o cotovelo para a mais nova forma de saudação.

– E a família?
– A minha está ótima, graças a Deus. E a sua?

– Tá sendo difícil. A esposa morreu desse vírus chinês aí… falei pra ela fazer o tratamento precoce, o presidente recomenda, os médicos sérios também. Não os comunistas comprados pela esquerda. Bando de petralha safado. A esposa não me ouviu… fomos pra uma festa de aniversário e ai ela caiu doente. Já tem uns 3 meses. Mas comigo não tem nada! Tomo meus remedinhos e todo dia digo a meus filhos que tomem… proteção é tudo. Tá vendo como eu tô saudável? Essa mídia lixo não vai me enganar!

– Imagino… bom, deixa eu ir aqui, viu?! Meus pêsames e tudo de bom.

Batem os cotovelos. Seguem em direções opostas. Na vida e no raciocínio, pelo visto.

Chega em casa. Tira as sandálias do lado de fora. Tira a roupa quase toda. Fica apenas a máscara. Eles mandam lavar as coisas ainda de máscara. Tem que lavar tudo. Despeja tudo na pia. Esse é o momento preferido. Enquanto a água cai, com um leve odor de cloro, relembra as sensações de um passado agora tão distante. Fecha os olhos e lembra de um dia na praia. Era um dia nublado, saiu querendo passear, sem rumo. Pegou o ônibus, pôs uma música e foi observando a paisagem até chegar no destino que não tinha definido. Fim de linha! Desceu, caminhou lentamente até o início da faixa de areia. Descalçou os pés e sentiu a brisa do mar num dia frio. Andou mais um pouquinho, molhou os pés e as mãos na água gelada. Sentou um pouco, sozinho mesmo. E ficou ali, observando a vida e a natureza. Foi um momento único, sem que saiba o motivo. Aquela sensação ficou gravada nas sua mente de maneira que é só fechar os olhos e está de volta àquela tarde de nuvens.

Entre um vegetal e outro na pia, sob a água, sente saudade. De estar vivo, livre. Não aguenta mais o roteiro sala-quarto-cozinha-banheiro. Não aguenta mais o pânico ao sair de casa, o receio de não saber interagir com pessoas, a catástrofe diária das mortes que não diminuem, as vacinas que chegam a conta-gotas, as notícias tenebrosas de parentes que adoecem, a infelicidade de estar confinado e ligar a TV para assistir gente confinada numa casa fazendo festa. A vida pela janelinha do aparelho. Os confinados assistindo o confinamento como entretenimento. Quando será que isso acaba, meu Deus? Será que acaba? Que tristeza…

Termina o ritual de lavar verdura por verdura. Guarda tudo nos lugares correspondentes, retira a máscara e põe pra lavar. Tem que tomar banho quando chega da rua. Toma banho. Senta no sofá. A mente já está muito distante daquele dia na praia. Gostaria de voltar. Parece impossível.

Ao retomar o fluxo das atividades rotineiras do home office, vai se sentindo cada vez mais distante da realidade que conhecia.

O dia passa e, na hora de dormir, lembra que não comprou as cenouras. Não queria retornar ao cubículo da vendedora sem máscara. Mas, quando for dar o banho nas cenourinhas, sabe que sua mente o levará de volta ao seu dia na praia, com o tempo nublado e o mar agitado. Um lampejo de liberdade e alegria, o seu escape dos horrores diários, o seu oásis particular, onde o tempo não passa e a realidade é a que desejar. Onde está vivo…
Deita com um sorriso. Percebe que está ansioso pelo banho nas verduras…

“Essa quarentena tá me enlouquecendo!”

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