O apartamento de Sísifo

Rafaella Paternostro Nery Rhen da Silva

A luz irrompe pela janela fazendo com que eu enfie a cara no meu travesseiro. A tática de deixar as cortinas abertas para acordar cedo funcionava apenas quanto minha própria motivação permitia. Encaro o celular ao meu lado, são 8:25h. Eu tenho 5 minutos para entrar na aula.

Relutantemente, vou me levantando. Fecho a janela para calar a luz ofuscante, mas resolvo deixar a cama sem forrar por enquanto. Me arrasto até a sala, há 1 ano, meu microcosmos de paredes brancas. Cato as latas de cerveja do chão e da mesinha de centro uma por uma, e as jogo no lixo. A noite anterior tinha sido o ponto alto da semana, uma chamada para comemorar a formatura de Augusto. No início da pandemia, as chamadas com os amigos eram quase diárias, depois se tornaram eventos especiais, como denunciavam os resquícios de rímel abaixo dos olhos. Gostava de dividir os estágios do distanciamento assim, como se o mesmo dia se repetisse por pelo menos 3 meses até que se impusesse uma nova rotina.  Por causa da celebração, não tive tempo para terminar de ler os textos que precisava para essa semana, vou ter que encaixá-los hoje.

8:38h, já estou atrasada. Não que estar atrasada fosse algo novo para mim, mas não ter que pegar o ônibus que só passava de meia em meia hora para a faculdade certamente dificultava esse hábito. Corro até o computador e entro na aula online. Câmera e microfone desligados me permitem preparar o café da manhã. Enquanto o professor fala, vou até a cozinha, frito ovos e coloco a água para ferver.

Retorno à sala com o café em mãos, arrasto a pilha de roupas sujas para o outro canto do sofá e puxo o computador para perto de mim. Meu olhar vaga para a varanda à minha direita, os prédios erguem-se contra o céu claro e mais pro fundo posso ver a saudosa praia. A essas horas, a essas horas, a rua no centro da cidade estaria bem mais ocupada. O lockdown certamente reduziu o fluxo, mas ainda se podia ouvir as buzinas estressadas. No final da rua, é possível enxergar uma sequência de bares que tínhamos o costume de fechar, um por um. Em outras épocas, seriam eles o palco da comemoração da formatura de Augusto e minha aprovação no mestrado.

O professor termina a aula beirando meio dia, passa duas leituras para a próxima semana. Anoto no celular mais essas demandas, abaixo dos textos que devia ter lido ontem, escrever as anotações da pesquisa em campo, o tirocínio, lavar e pendurar as roupas, ligar para a família. Acho que consigo resolver uma das pendências antes de almoçar. Tento fazer uma estimativa de tempo para cada uma delas, e uma ordem de prioridades. Os textos atrasados são mais urgentes. A lista me sufoca, talvez uns minutinhos de distração ouvindo música não cairiam tão mal. Sou acordada dos meus devaneios pela barriga roncando. Já são 13h.

Pego a comida da geladeira, a última porção que restou, e esquento no micro-ondas. Amanhã vou ter que cozinhar de novo. Terminando de almoçar, o interfone toca. Chegou a entrega do mercado. Detesto não poder fazer minhas compras com calma e escolher a dedo os produtos, mas só de pensar em entrar em um mercado cheio minhas mãos começam a suar. Chamo o elevador. Merda, esqueci a máscara. Corro de volta para o apartamento. São necessárias duas voltinhas para encontra-la pendurada na janela estreita da cozinha. Aproveito para levar comigo também uma caneta para apertar os botões do elevador.

Eu poderia guardar só os itens de geladeira e tentar adiantar os textos, deixava o resto das compras para depois. As várias sacolas no chão da cozinha me encaram: não tem jeito. Vou tirando cada artigo e divido como vou limpar- alguns com álcool, outros debaixo da torneira. Os deveres acumulados pairam sobre minha cabeça, tento acelerar. 15:20h. Tenho que entrar em outra aula, mas para essa não posso me atrasar, sou tirocinante.

Pontual, com a câmera ligada, o tirocínio eu faço no automático. Não é desgastante, pelo contrário, ao menos com as aulas eu consigo distinguir os dias da semana. Mas todo o tempo a lista de afazeres martela paira sobre minha cabeça. Prometo a mim mesma que assim que acabar vou ser produtiva. 17:30h. Já estou cansada, e ainda tenho muito o que fazer. Resolvo passar mais um cafezinho.

Café tomado, encaro a lista no meu celular mais uma vez. Não tenho tempo de fazer tudo, mas o que fazer? Não adianta colocar as roupas na máquina, vou atrapalhar os vizinhos e não tem mais sol para secá-las. Os textos já estão atrasados, deveria começar por eles, mas me sinto sufocada. É um tanto ridículo conceber que uma única tarefa me assombre tanto. Talvez se tivesse mais coisas para fazer, mais lugares para ir, a diversidade me obrigasse a colocar as mãos na massa. Prefiro não pensar muito. Vamos lá, só isso por hoje. Tento me concentrar, mas meus olhos desviam para as paredes que me enclausuram.

Uma arrancada de energia me toma algumas horas depois e consigo me ater às palavras do texto. Meus dedos sambam no teclado do computador anotando tudo que é pertinente à minha pesquisa, as referências que posso utilizar, pontos que me parecem contraditórios, e me perco no meu trabalho até que meus olhos começam a pesar. Já passou da meia noite. Acho que não consigo terminar esse texto hoje. O pior é que é muito interessante, se eu o tivesse começado mais cedo teria tido a disposição necessária. Que inferno.

Antes de entrar no banho, retorno à lista do meu celular: terminar esse texto. Escrever as anotações da pesquisa em campo. Lavar e pendurar as roupas. Ligar para a família. Cozinhar. Tento relaxar sob a água morna do chuveiro, sem efeito. 1:05h. Me arrasto até a cama sem forrar e fecho meus olhos, torcendo para que amanhã seja diferente.

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