Da valentia de viver

Por Lara Machado

Na clausura pandêmica, tomei como hábito olhar as crianças brincando no parquinho do condomínio de classe média em que vivo. Sei quando é hora de repousar à janela quando ouço os choros, os risos e berrinhos de um agudo sem igual me chamando. Logo no começo, babás e responsáveis desviavam seus olhares do meu, incomodados com minha presença distanciada, mas logo me aceitaram. Gostaria de acreditar que viram como me fazia bem ver a alegria descompromissada de seus pequenos, mas creio que simplesmente se acostumaram com minha audiência cotidiana.

Pois bem, hoje faz pouco mais de 1 ano que vivo em recolhimento. O marco me lembra que acompanho cerca de metade da vida de uma bebê que vi, pela minha janela, aprender a andar. O ano que para mim passa vagaroso, mas é apenas um dos vinte e tantos que carrego, para ela é quase toda vida. É no cotidiano absurdo de uma pandemia sem igual que ela está aprendendo o trivial. Acompanhei seus primeiros passinhos ligeiros e descontrolados. Hoje, apesar das perninhas pequenas, seu andar é firme. Ela é certa nas direções que assume. Carinhosa com a babá e muito apegada a avó, que aparece semana sim semana não, abre mão dos carinhos pra desbravar o pequeno mundo de grama sintética incrustado entre os dois prédios que compõem o condomínio. Ela não se intimida pelos gigantes de concreto que provocam a eterna sombra sobre seu território encantado: mesmo quando os percebe e os investiga dando passinhos para trás procurando o fim da torre. Transparece uma familiaridade imensa com o mundo.

Dentre tantas crianças que brincam por aqui, consegui captar os nomes de registro de várias pelos chamados de seus responsáveis: tenho como vizinhos Miguel, Henrique, Júlia, Camila, Cecília – essa espichou absurdamente nesse tempo. Aqui cabem parênteses: sempre tive um faro inconfundível para nomes. Já errei o nome de batismo, mas o nome de aura nunca. Sei que tal desarranjo parece mera desculpa para atenuar meus fracassos. Juro que não iludiria meu caro leitor assim. Enfim, às crianças que me sujeitei a atribuir o nome, não errei nenhum, era invicta até então.

No entanto, aquela menininha de pernocas gordinhas e caminhar determinado me desafiou. Tentei ouvir sua babá chamá-la. Nada. Passei para fase de tentar fazer a leitura labial de sua avó. A máscara me impedia. Talvez eu estivesse realmente ociosa demais na quarentena… Parti para a formulação da suposição. Quase não a via choramingar, é muito serena mesmo no caos em que vivemos. Seus olhos ambiciosos faiscavam uma contiguidade absurda com o mundo. Independente, parecia uma pequenina soldadinha. Eis sua farda: um vestidinho floral rosa e lilás. Minha suposição era de que se chamava Valentina, a justificativa racional reside na recente explosão demográfica de Valentinas. Mas era no poder de representar sua determinação que realmente se explicava minha escolha.

Nessa semana, uma oportunidade se concretizou. O vento tomou de assalto uma máscara que secava ao varal cuja vista dá exatamente para o parquinho em que nossa suposta Valentina costuma brincar. De primeira resmunguei, não quis ir buscar o recém mais rotineiro acessório do código de toda e qualquer vestimenta. Pensei na possibilidade de cruzar com algum vizinho pelo caminho e uma preguiça social extrema tomou conta de mim. Mas a agonia de ver a máscara jogada ali no chão era maior. Peguei outra máscara, coloquei a roupa já dispensada para pegar compras ou ir buscar correspondências e desci. Fui pela escada, o ar parado do elevador me aterroriza, os botõezinhos milhares de vezes tocados num dia… Não cruzei com ninguém até que cheguei no parquinho e vi a soldadinha e sua babá chegando. Se fosse ensaiado não seríamos mais sincronizadas. Pela primeira vez vi seu olhar direcionado para mim. Não tinha a força que imaginava ter. Era uma criança, afinal. Tinha o rosto inchado, como se tivesse acabado de acordar de um longo cochilo vespertino. A babá a coloca no chão e ela vai deslumbrada com sua boneca para o balanço. Observo de perto aquele passo a passo que tanto vi de longe. Não tem destreza, é só a falta de medida de força necessária. Os pequenos abusam do peso dos passos, como para se ancorarem ao chão. Sua verdadeira habilidade estava na vagarosidade com que andava. Devagar e sempre, ia se equilibrando com os pés bem fincados no chão e o corpinho se escorando na intuição de caminhar.

Um ano de admiração do que não existia. Inventei uma perícia que menininha não tinha – nem poderia ter. Quanto projetei minhas vontades de ser valente naquela menina? Como esperei que ela fosse um símbolo de audácia em tempos tão… Agora parecia ridículo ter esperado de uma criança tanta determinação. Que loucura a minha de imaginar a vocação de ser valente para uma bebê. Agora via que nem 2 anos completos ela deve ter. Apanho a máscara resignada. Estaria eu ociosa a tal ponto? Estou ficando louca? E então a babá a chama, me despertando dos devaneios conformistas.

– Poliana, quer água?

E então, Poliana-não-valentina vai andando em direção à água. Tropeça. Mas ela segue sedenta para saciar sua sede.

Rio de alívio comigo mesma: até para ser Poliana é preciso ter certa valentia de viver.

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