Luto na pandemia: mudanças nos rituais de passagem e adoecimento mental
Cientistas e líderes religiosos afirmam que o enfrentamento do luto foi modificado na pandemia, pelo menos 110 mil baianos foram impactados
Jamile Araújo e Vinícius Viana
Pouco mais de um ano da confirmação da primeira morte pela covid-19, cerca de 110 mil baianos vivem um luto transformado pela pandemia. As medidas sanitárias de proteção contra a covid-19 incluíram sepultamentos com poucas pessoas, distanciamento social e caixões completamente lacrados. Nesse novo cenário, com uma média de cinco mortos por hora no estado, a cada dia, 120 novas famílias baianas experimentam a dor de enterrar seus entes queridos.
Com a pandemia, na Salvador sincrética, cientistas e líderes religiosos concordam que o enfrentamento do luto foi modificado. A impossibilidade de despedida do corpo, a ausência de rituais de passagem e o próprio distanciamento físico são citados como razões. A ciência fala em ‘luto complicado’; as religiões de matriz africana, que acreditam na possibilidade de rituais sem o corpo físico, destacam a importância da morte para a continuidade da vida.
Rosimeire Santana, que perdeu a mãe de covid-19 em maio deste ano, relata a dor de não poder se despedir. “Não pude ver nem o rosto da minha mãe pela última vez. O caixão estava lacrado. Dói muito. Você não tem o direito de ver a pessoa pela última vez. Até mesmo antes de morrer, você não tem como entrar no hospital para ver o rosto dela , para dar uma palavra de fé. A pessoa precisa ficar lá, literalmente solitária.” Joel Zeferino, líder religioso da Igreja Batista Nazareth, fala que o luto na pandemia é uma experiência de forte desespero e desconsolo. “A falta da visualização e o impedimento do toque geram um sentimento de perda incompleta. É um misto da certeza da perda, junto com o sentimento de que a pessoa que partiu ainda está presente, pela ausência da vivência do luto”.
Grávida, Suellen Cruz (23) destaca a imprevisibilidade da doença. Suellen, que perdeu o marido de forma repentina e descobriu a gravidez no dia seguinte ao enterro dele, conta que em apenas 15 dias de internamento e, apesar de não possuir comorbidades, o marido, de 36 anos, não resistiu. “Ainda não consegui acreditar. Foi tudo muito rápido. Ele começou a reclamar de uma tosse seca no início de abril. Em menos de uma semana a respiração piorou e o levei na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) em Itaparica. Da UPA ele foi regulado para a UTI no Hospital Couto Maia e não voltou mais”, diz Suellen.
As análises sobre o número de enlutados pela covid-19 variam. Algumas consideram enlutados todos da rede de apoio mais próxima – como fez o estudo publicado no Proceedings of the National Academy of Sciences, em julho de 2020, que estimou esse número em nove -, outras apenas os do núcleo familiar estrito. No Brasil, esse núcleo familiar é formado por uma média de 3 pessoas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A partir dessas análises é possível estabelecer uma média de 5 enlutados, entre rede de apoio e núcleo familiar, por cada morte de covid-19. No estado, em que a marca de 1 milhão de casos foi atingida e onde já são pelo menos 22 mil mortos de covid-19, pessoas com experiências semelhantes às de Rosimeire e Suellen têm a saúde mental comprometida.
O ‘luto complicado’
O luto é visto como uma transição psicossocial na relação com o mundo, promovida pela ruptura de um vínculo significativo, a partir de uma experiência de perda, pela medicina. Na década de 60 do século XX, a psiquiatria clássica propôs a divisão do luto em cinco fases: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação, mas, segundo o psiquiatra Bruno Benites, essas fases não são lineares. “As fases do luto acontecem muitas vezes misturadas. Inclusive, atualmente, a forma mais potente de se enxergar o processo de luto é pelo modelo do processo dual, em que o enlutado oscila entre momentos focado na perda e momentos focado na restauração”.
A psicóloga Cecília Dassi fala em ‘luto complicado’ no contexto da pandemia. “O ‘luto complicado’ é um luto que não consegue se resolver, que não consegue caminhar com equilíbrio. É um luto que impede a pessoa de continuar vivendo e lidando com a própria vida”. Para o pastor Joel Zeferino não é possível saber até que ponto as mudanças trazidas pelo luto vivido na pandemia impactarão na saúde mental das pessoas e em mudanças nas perspectivas religiosas de protestantes-evangélicos. O psiquiatra Bruno diz que o consultório já tem revelado o aumento de pacientes vivendo o ‘luto complicado’ e que eles tendem a ter mais depressão.
“O fundamentalismo religioso – que é uma versão, completamente exclusivista e autocentrada, em torno de dogmas e práticas que devem ser cegamente seguidos, como forma de se ter ‘certeza’ e ‘segurança’ tem crescido”, lamenta o pastor Joel. Para ele, apesar disso, o mundo segue seus ciclos e transformações, independentes de nossas crenças. Bruno cita a impossibilidade de despedida do corpo, a ausência de rituais de passagem e o próprio distanciamento físico como fatores complicadores do luto na pandemia. A psicóloga Cecília acrescenta que as redes de apoio estão diminuídas pelo isolamento social e que isso complica a elaboração do luto.
O encarar da morte e as mudanças nos ritos de passagem
Vilson Caetano de Sousa Júnior, antropólogo e Babalorixá do Ilê Oba L’Okê, diz que os rituais de passagem no Candomblé cumprem a função de estabelecer fronteiras. “Eles criam vínculos estabelecendo um antes e um depois. Os sufrágios cumprem esta função. Se por um lado há a crença de que o morto é encaminhado pelos antepassados ao mundo dos ancestrais, e tendo “consciência” de sua passagem, a comunidade também vai se ‘separando’, ‘rompendo’ os laços com o seu ente querido. Desta maneira, a pandemia impacta diretamente em alguns rituais”. O psiquiatra Bruno diz que os rituais de despedida servem como validação da vida de quem morreu e por isso são tão importantes na nossa cultura. “É quando as pessoas se reúnem para demonstrar a importância daquele ser humano que morreu. É quando juntos comemoram a existência daquela vida e lamentam sua partida. É cultural”.
O babalorixá Vilson relata que devido à sabedoria africana é possível realizar rituais mesmo com a ausência do corpo físico. “Exemplifico: ritual em que é preciso a presença do corpo físico e este corpo não pode ser manipulado, sequer tocado, ele é representado através de outros elementos. Sempre foi desta maneira. É o que chamamos de equação simbólica: o todo é maior do que a soma das partes, mas a parte contém o todo. Assim, cada fragmento do universo pode representar este corpo, que também é uma porção individualizada de nossa ancestralidade”. Pastor Zeferino afirma ainda que a covid-19 radicalizou elementos já em curso, como o da ‘higienização da morte’, e quase completo impedimento de um mínimo de cerimoniais necessários para cada pessoa elaborar o seu luto. “Fomos jogados diante de uma realidade completamente nova, onde os corpos são ensacados, os caixões fechados. As palavras do líder religioso, a presença de familiares e amigos, os cânticos, leituras e orações, que marcavam os cultos fúnebres, foram retirados de uma só vez”.
De acordo com o pastor, a morte, no protestantismo-evangélico, tem um caráter de uma ruptura definitiva. “Em oposição às crenças católicas, quando alguém morre, não há mais nada o que se fazer. Se a pessoa morreu ‘convertida’, sua alma irá diretamente para o céu. Aguardando, porém, a segunda vinda de Jesus, para que possam experimentar o estado mais perfeito, que será a ressurreição, onde corpo e alma (e espírito, pois há quem faça essa diferenciação), serão reunidos para viver na ‘morada eterna’, após o ‘fim dos tempos’, o ‘juízo final’, e a implementação definitiva do ‘reino de Deus’”, diz Joel.
Já para os povos de terreiros, em especial os do candomblé baiano de nação ketu, ou aquele onde as visões de mundo, aqui denominadas nagôs, predominam, a morte está longe de significar um momento de passagem, aniquilamento ou a finitude da vida. Vilson Caetano explica que a morte, para esses povos, é um conceito essencial para a continuidade do grupo social. “A expressão entoada na língua iorubá ‘Bobo aunlò’, que significa ‘todos morrem’, visa conscientizar a comunidade, por ocasião do falecimento de um ente querido, sobre a importância desse momento para a continuidade e manutenção da vida. O que pode parecer contraditório é, na verdade, um dos elementos essenciais do pensamento iorubá presente entre os povos de terreiro”.
Vilson afirma que para o ‘povo de santo’ a morte é uma iniciação. “Através dela os iniciados no candomblé ingressam no mundo dos antepassados, na casa do renascimento, retornam para a matéria primordial, para a terra, a qual lhes deu origem. Desta maneira, todos os ritos, direta ou indiretamente, relacionados ao corpo, entendido como porção de terra individualizada, precisam ser respeitados e garantidos”.
A relação entre corpo, morte, vida e terra acompanham os negros historicamente no Brasil. Vilson explica que essa relação vai desde as irmandades negras católicas, aos terreiros de candomblé. “‘Os povos de terreiros’ mantêm tal prática por entender a relação entre o corpo e a terra, e o significado da morte e do morrer como conceitos fundamentais, através dos quais grupos humanos engendram formas variadas de vida e vem se reproduzindo ao longo do tempo. Afirmando que os que nascem são sempre vivos e que é a terra o lugar deste renascimento, por ser o nosso local de partida”.
Foi fundamentada neste argumento que a Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia (AFA) realizou um pedido junto ao Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA), no início da pandemia da covid-19, que fez o órgão recomendar ao estado da Bahia e ao município de Salvador, sempre que possível, em respeito à liberdade de culto e liturgia dos povos indígenas e dos religiosos de matriz africana, o enterro do corpo na terra. A promotora Márcia Teixeira, do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação (GEDHDIS), recomendou que a cremação e o sepultamento em gavetas só sejam adotados em último caso. De acordo com Leonel Monteiro da AFA, os governos estadual e municipal deixaram cientes a direção de todos os cemitérios de suas respectivas competências sobre a recomendação do MPBA. “Se houver negativa o MP deverá ser acionado, bem como também poderá solicitar apoio da AFA”, afirma Leonel.