Camilla Sales: Na pandemia a imprensa defendeu a democracia, o que já tem feito há anos.”
Elis Freire
Camilla Sales, produtora e editora da TV Bahia, expôs o que a pandemia transformou nas práticas do telejornalismo: “Tudo é pautado a partir da pandemia”. Para ela, durante esse momento, o jornalismo foi tão requisitado que sua importância foi escancarada: “O papel do jornalismo é esse papel humano, esse papel de humanizar”. A jornalista, pós graduada em cinema e audiovisual, defendeu a necessidade de um olhar cuidadoso para cada personagem que compõe histórias reais, as quais precisam ser contadas por meio de informação de qualidade.
A função de produtora no telejornalismo flutua entre pautar, redigir, organizar, apurar. Como a pandemia interferiu nessas práticas?
Interferiu em tudo. A produção é onde a notícia começa. O primeiro contato de dentro de uma redação com a notícia é via produtora. Tudo é modificado com a pandemia, com essa coisa de se distanciar, de não poder ter o contato físico. Posso te falar algumas coisas, por exemplo: muda muito o processo de apuração, o processo de marcar entrevista. A produtora tem que primeiramente fazer as apurações preliminares. Para isso, a gente pode ser levado “in loco” (no local), mas com a pandemia não tem sido assim. Então, é [feito] o contato telefônico; eu marco de cá e a pessoa de lá. Essa foi a única possibilidade que a gente estava tendo e está tendo até hoje muitas vezes. Além da apuração do que está acontecendo, marcar entrevista requer um tato, uma afetividade, que a distância tira da gente. O entrevistado também é uma pessoa que está sendo afetada pela pandemia. Tudo isso pesa. Para além do nosso lado jornalista trabalhando ali, [está] o lado emocional, o lado humano. O papel do jornalismo é esse papel humano, esse papel de humanizar. A gente [o produtor] é a primeira pessoa a colher os fatos, a ouvir os depoimentos, a escutar diferentes versões, a se apropriar o conteúdo.
Como a pandemia afetou a organização de pautas e temas abordados nos telejornais da Rede Bahia em que você atua?
Afeta completamente. Eu tenho que pensar as pessoas que vão dar substância a essa pauta, quem eu vou contar a história. Com a pandemia afeta tudo, porque mexe complemente com no formato audiovisual dessa reportagem. Nós temos que produzir as pessoas para serem entrevistadas a distância, pedir vídeos para essas pessoas. Ou seja, eu não levo uma equipe para casa dela para poder captar, eu peço para ela captar diretamente. Essa fonte é produtora também da matéria, [já que] ela está captando a própria entrevista. Então, afeta organicamente o formato dessa reportagem e afeta muito o conteúdo. O “setor pandemia” [aspas com os dedos] do jornal não é simplesmente aquela matéria cobrindo a vacina, ou o aumento de casos nas upas. Não é só isso.
O “setor pandemia” interfere em todas as outras pautas?
Interfere em todas. Tudo é pautado a partir da pandemia. Então, se eu estou pautando o retorno das aulas da rede estado, eu estou pautando a pandemia também. Porque a pandemia fez as aulas deixarem de existir [de forma] presencial e, a partir do momento que tem um retorno integral, isso foi gerado a partir de uma pandemia. Insegurança, que a gente tem pautado muito, também é por conta da pandemia. A gente tem dados que tem embasam isso de aumento da violência, de roubos furtos, por conta da pandemia.
Você considera que algumas transformações desse período são positivas e vieram para ficar? Algumas formas de apurar e obter informações?
Eu acho que com certeza vai ficar. Porque, apesar de toda a miséria que a gente está vivendo, todo esse caos institucional, epidemiológico, educacional, desaguou para gente como jornalista a pensar: “O que a gente pode fazer para não se distanciar dos assuntos, para não se distanciar das pessoas, para seguir fazendo jornalismo, para seguir tratando da vida real?” Então, a partir do momento que eu recorro à minha fonte, que eu peço para ela captar a própria entrevista, por uma questão obviamente da pandemia, eu ainda vou continuar pedindo no pós pandemia, porque isso facilita o trabalho. Claro que isso veio por um motivo ruim, mas a gente tenta o tempo todo pensar formas, pensar estratégias e ir incorporando na nossa rotina, para desafogar.
E sua relação de produção de reportagens de rua, como se deu nesses últimos 2 anos?
Totalmente diferente o cenário pré-pandemia de uma externa. Inclusive do ponto de vista da equipe eram mais pessoas envolvidas; o cara do áudio, a pessoa que dirige. Hoje, o operacional ficou com a mesma pessoa. A gente sempre pauta a externa factual, por exemplo: “Ocorreu um tiroteio em tal bairro e algumas pessoas morreram”. Porque nesse caso as pessoas tão ali. Mas no que é produzido, a ideia é você ter menos gente possível. Tem outra questão: o distanciamento na hora da gravação. Isso influencia na disposição dos equipamentos, influencia na forma como a gente vai lidar com essa fonte. Nem todo mundo tem uma casa que possibilita o distanciamento. As vezes, a pessoa mora numa casa super pequena, tem vários filhos. Então, tem toda essa questão da desigualdade no set. E, obviamente, [essa desigualdade] entra narrativamente na reportagem. Porque é isso, a pandemia afeta sobretudo pessoas menos desfavorecidas. Então, a externa, desde o início, é muito mais difícil de ser feita. Além de as pessoas estarem emocionalmente abaladas.
Você considera que a TV Bahia conseguiu dar um bom suporte durante a pandemia? Deu apoio aos funcionários, garantias trabalhistas, equipamentos de proteção?
Vou começar por um ponto positivo: eu acho que teve uma busca por uma solução imediata quando tudo começou. “Vamos deixar menos pessoas na redação, vamos fazer escala híbrida entre home [office] e TV”. Houve aferição de temperatura, “dispenser” de álcool em gel espalhados pela TV, áreas de trabalho separados, o uso da máscara obrigatório. Tem um “vacinômetro”; a empresa vai meio que entendendo a porcentagem dos profissionais que estão imunizados. Isso influencia absolutamente a rotina, porque mais pessoas podem voltar ao trabalho. Mas, falando como produtora, nessa escala híbrida a produção não entrou. A gente ficou presa todas as semanas na empresa. Eu acho que a coisa poderia ter sido feita de um outro modo.
Você não teve home office?
Eu tive home office muito depois, esse ano. E tive pouco tempo, ainda teve isso. Mas eu acho que no sentido da produção, o olhar foi um olhar diferente, poderia ter sido mais cauteloso.
Você observou mudanças no consumo de telejornais pela população?
Sim. Eu acho que houve uma mudança. Em termo de dados, no início da pandemia aumentou muito o número de ligados – o número de pessoas na TV aberta. Agora esse número já é menor, porque com a pandemia rolando, não é como no início que teve aquele boom, aquele susto. As pessoas pediram para a TV informar o que estava acontecendo, recorreram a nós para entender o que estava acontecendo. Eu lembro disso, porque foi uma coisa muito pautada na reunião de pauta, logo naquele início da pandemia – naqueles 3 primeiros ou 4 primeiros meses de pandemia – a TV Bahia estava com audiência maior . E a gente acredita que foi por conta disso, as pessoas queriam uma informação correta: “O quê que eu faço? Quando que vem a vacina?” Várias perguntas surgiram e elas queriam essas respostas, que o telejornalismo dava para elas.
O jornalismo passou a ter um novo papel na pandemia? Qual?
Eu não sei dizer se novo papel, acredito que novo não. Eu acredito que a pandemia foi um momento para legitimar, para bater o pé e dizer: “Isso que a gente fez é o que a gente tem feito a anos, desde que a imprensa existe. A gente defende a democracia, faz manual da democracia”. A gente é um jornalismo apurado, um jornalismo que destrincha que dá possibilidade para quem tem está aí do outro lado ter acesso à informação, ter acesso à realidade, seja ela boa ou ruim. Estamos em um momento de desgoverno total, que é contra esse pensamento, o que fragiliza a nossa instituição imprensa. Mas, apesar disso, foi um momento de mostrar um trabalho de apuração de afinco, que é levar informação e levar informação bem apurada, escutando todos os lados.