Pandemia impulsiona mudança nos hábitos literários: Compras em livrarias digitais protagonizam processo

Pedro Antunes e João Francisco Araújo

As livrarias digitais, durante o período pandêmico, se tornaram protagonistas nas porcentagens de vendas. Em levantamento feito pela reportagem, 65,5% dos consultados passaram a comprar livros online por conta da pandemia. A pesquisa foi feita envolvendo 87 pessoas ao redor do Brasil, principalmente universitários baianos. Fatores como o home office, o ensino à distância e o aumento nos índices de ansiedade e depressão foram alguns dos motivos para a transformação da área.

Tendo como base a pesquisa de produção e vendas do setor editorial brasileiro, realizada anualmente pelo Sindicato nacional dos editores de livros (SNEL), a participação das livrarias digitais nos faturamentos cresceu 84% em 2020. Em consonância com essa tendência, houve um crescimento de 83% nas unidades de e-books vendidas, de acordo com a pesquisa sobre conteúdo digital do setor, também realizada pelo SNEL.

Com o confinamento, o ato da compra pela internet tornou-se dominante. Para o mercado de livros, esse hábito é acompanhado do crescimento do consumo de e-readers, compiladores de versões digitais – muitas vezes mais baratas – de praticamente qualquer obra requisitada. Gabriel Tupy (20), estudante de relações internacionais, comenta em entrevista: “Eu tive muito mais acesso a ebooks – por essa questão de preço – do que antes. Eu não costumava ler ebooks antes da pandemia e hoje é quase o principal – eu leio muito pelo computador, pelo celular.

 

Eu não costumava ler ebooks antes da pandemia e hoje é quase o principal – eu leio muito pelo computador, pelo celular.

 

 

No cenário de crescimento desse mercado, a americana Amazon desponta como a maior vendedora de livros no Brasil. Após a falência das gigantes Saraiva e Cultura, a Amazon dominou o varejo com a expansão do mercado de e-books. O avanço da leitura digital é justificado não só pela comodidade, necessária durante uma quarentena, mas, também, pelo preço mais acessível, principalmente quando lidos através de computadores e celulares. De acordo com a pesquisa sobre conteúdo digital citada acima, o preço médio dos produtos apresentou queda de 25%. Em entrevista, Gabriel Tupy contou: “[passei a consumir livros digitais] pela facilidade, praticidade e portabilidade – é mais fácil de acessar e mais barato”.

Li mais livros este ano do que minha vida inteira.

Hellen Andrade, estudante ainda a ingressar na universidade, pontuou: “Li mais livros este ano do que minha vida inteira”. Algo que pode ser indicador desse cenário é, também, uma maior possibilidade de consumo pirateado das obras. “Quem tem condição, compra, mas quem não tem, acaba indo para isso. Eu não acho que seja uma coisa tão ruim – as vezes é a melhor saída para quem realmente não tem condições nenhuma de comprar um livro, sabe? Acredito que não ler não é uma opção. Nós temos que ler e temos que incentivar [a leitura].”, pontuou a entrevistada. No levantamento feito pela reportagem, 50,6% dos consultados também relataram um impulsionamento nos hábitos de leitura durante o período pandêmico.

 

 

O APEGO À LITERATURA SE FORTALECEU

Para além da situação econômica, houve um fortalecimento da prática da leitura, graças à função terapêutica que ela pode oferecer. Hellen Andrade comentou um fenômeno que pode ter sido a chave em seu consumo literário: “Tinha de fazer tudo com a tecnologia e ficar na frente da tela o tempo todo. Eu acho que esse excesso de exposição às telas e à tecnologia me fez querer dar um passo para trás e voltar a ler. Além disso, estava muito ansiosa, então queria me desligar do mundo por um tempo. Não queria correr o risco de estar aqui, assistindo alguma coisa, e receber uma notificação que vai estragar o meu dia. Gostaria só de entrar em outro mundo e desligar um pouco a minha cabeça. É isso que eu tenho feito – talvez até demais (risos)”.

Eu acho que esse excesso de exposição às telas e à tecnologia me fez querer dar um passo para trás e voltar a ler.

Percebe-se uma utilização das obras literárias como escape de uma realidade desconfortável. Ainda em entrevista, Hellen comenta: “Percebi que tive uma tendência aos [gêneros] que me dessem uma maior possibilidade de escape da vida real. Sinto que isso foi até um pouco prejudicial, em alguns momentos. Sentia que, às vezes, preferia mais viver a vida dos personagens do que a minha. Mas, ao mesmo tempo, foi um escape, sabe? Eu sinto que precisava de uma distração. Livros como os de coming of age: você saindo da escola e entrando na faculdade – essa época. Gostei muito de ler isso, principalmente porque é algo que eu deveria estar vivendo e não vivi. Eu devia estar entrando na faculdade, saindo com meus amigos com frequência, viajando. Devia estar fazendo tanta coisa e não posso fazer pela pandemia. Então vou sentar aqui, ficar o dia inteiro no meu quarto lendo sobre alguém que está fazendo tudo que eu poderia fazer. É assim que eu me sinto. É meio triste, mas, ao mesmo tempo, é o que eu precisava para passar por esse ano.”

A mudança nos interesses dos leitores foi algo observado em conjunto ao impacto emocional relatado por estes. Um trabalho publicado no periódico científico JAMA Pediatrics reuniu dados de mais de 80 mil jovens de até 18 anos em diversos países. Neste, conclui-se que os sintomas de depressão e ansiedade dobraram desde o início da pandemia. Dentre os consultados no formulário de novembro de 2021, 58,6% acreditam que a literatura ajudou a lidar melhor com o contexto da pandemia.

 

Ainda análoga às pesquisas, mas, de forma oposta ao experienciado por Hellen, Gabriel Tupy comenta sobre como a literatura o ajudou no entendimento de temas recorrentes neste contexto: “Se você se afastar desse conceito de morte, em uma fase como essa, você está fugindo do problema. Tivemos familiares, amigos e conhecidos que faleceram. Você está cercado por esse ambiente e isso ameaça a sua própria vida também, se você não estiver bem com esse conceito… Pelo menos para mim foi assim. Reli coisas sobre o tema, por exemplo. Isso me ajudou a jogar os pensamentos que estavam difusos em uma imagem. Quando você cria a imagem, facilita lidar. A ficção sempre vai ajudar nisso.”

O estudante considera a literatura como ajuda para lidar com temas mais intensos durante esse período de perda: “Há momentos em que você não quer ler, que você não se interessa por certos assuntos porque isso não diz respeito à realidade que você está vivendo. Uma coisa que cresceu, para mim, durante a pandemia, foi a leitura de coisas mais violentas, sabe? Livros que refletem sobre violência, sobre morte, sobre a agressão ao corpo em geral – que possam violar o seu direito de vida. Tudo isso apareceu mais para mim. Ter contato com esse tipo de literatura me fez refletir sobre isso e me fez enfrentar algo que se não fosse a ficção eu não conseguiria.”

 

A VOLTA DAS ATIVIDADES TRAZ UMA NOVA PERSPECTIVA

 

As mudanças que a pandemia trouxe para o mercado e o comportamento literário podem ser sentidas também na transição à normalidade. Gabriel Tupy pontua sua visão pessoal: “Durante a pandemia, acabo tendo pouco contato com meus amigos, muito por uma questão pessoal. Eu mando pouca mensagem, não converso tanto virtualmente, acho que não sei me relacionar direito dessa forma. No presencial, quando você está conversando com alguém, sempre rola uma indicação: o que a pessoa está lendo e assistindo. Isso vai te animando a ler mais, a consumir mais. O próprio ambiente universitário que eu frequento me influencia a desenvolver a leitura.”

A pandemia foi experienciada de formas adversas pela população. No formulário realizado pela reportagem, 65,7% dos consultados acreditam que as mudanças serão mantidas na transição à normalidade.

 

 

Um teste para você, leitor, checar se seus hábitos de fato mudaram durante o contexto pandêmico: https://forms.gle/sbA8tvNhkMZ9PsDq7

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