Valéria Lima: ‘’Temos que mostrar que existem outras coisas para além do que está sendo noticiado nos veículos tradicionais’’
Elaine Alves
Editora-chefe do portal de notícias Correio Nagô com 12 anos de experiência na TVE, Valéria Lima acredita que há uma ausência de pautas de cunho racial nos veículos tradicionais e digitais, justificada por uma existência de imparcialidade jornalística. ”A imparcialidade do jornalismo também não existe. Existe sempre o interesse de alguém. E o Correio Nagô assume que não tem essa imparcialidade’’. Afirma que não considera a existência de uma disputa de espaço do jornalismo digital com a produção de conteúdo disseminado na internet: ‘’Estamos falando de produção qualificada e de textos jornalísticos. Não são conteúdos que podemos comparar. Acredito que o que determina o interesse de quem está do outro lado é isso. Quem se interessa por ver portais de notícias e quem só vê rede social’’. Com 10,9 mil seguidores no perfil do Instagram do Correio Nagô, Valéria comenta sobre as dificuldades do portal em se manter presente nas midias sociais: “O Correio Nagô tem poucos seguidores na minha concepção. Nas redes sociais temos que lutar contra a lógica dos algoritmos que prejudicam a gente”.
Sua participação no portal Correio Nagô foi influenciada por necessidades ou experiências de aspectos ausentes no jornalismo?
Sim. A gente tinha uma demanda grande das nossas pautas, pautas raciais e a cultura negra. Não tínhamos espaço nos veículos tradicionais de comunicação, tanto o jornal impresso quanto a mídia digital. Não tínhamos espaço em lugar nenhum porque não interessava a ninguém as nossas pautas. Dentro da academia você vai ouvir muito sobre neutralidade. Eu sempre falo que a neutralidade científica está para a imparcialidade do jornalismo. Não existe neutralidade científica. Todo ser humano tem um padrão de vida complexo. Todo indivíduo tem valores. Tem uma série de questões que vão ser levadas em consideração no processo de pesquisa. Então a imparcialidade no jornalismo também não existe. Existe sempre o interesse de alguém. O Correio Nagô assume que não tem essa imparcialidade. Assume que tem uma linha editorial que é voltada para as questões sociais.
Você trabalhou por anos como produtora da TVE Bahia, um veículo jornalístico tradicional. Quais as principais diferenças entre o meio tradicional e o Correio Nagô, um portal digital?
A TVE tem um compromisso com o conteúdo qualificado. Ela produz documentários, coisa que as outras emissoras não fazem. Não têm preocupação com relação ao conteúdo que está sendo dado. Muito pelo contrário, elas vão muito no ‘oba oba’. As TVs que são comerciais demais vão se rendendo ao modismo e não têm preocupação com a qualificação do conteúdo. Então, nesse sentido, não tem grandes diferenças, porque o portal Correio Nagô se preocupa com a qualificação. É isso que vai determinar o posicionamento da gente enquanto portal. É muito mais importante mostrar o que está sendo feito na Bahia e no Brasil com relação à cultura negra. Sempre falo que sendo um veículo que pertence a uma organização social [Instituto Mídia Étnica], que tem um compromisso de fato com a sociedade, não podemos surfar na onda. Temos que mostrar que existem outras coisas para além do que está sendo mostrado nos veículos tradicionais.
O que você considera essencial para manter o alcance de um veículo alternativo do jornalismo digital?
Temos a preocupação de produzir um conteúdo qualificado. Não agimos baseado em quantas pessoas vão ler isso, ou se mais pessoas vão ler se mudarmos a linguagem. É claro que queremos atingir o maior público possível, mas não vamos diminuir a qualidade do que produzimos para atingir esse público. Não é para ter número. Não faremos esse cálculo que o comercial é obrigado a fazer. Com isso não estou dizendo que não precisamos das pessoas, não é isso. O objetivo tem que ser alcançado de forma estratégica. Não de forma aleatória. Não o número pelo número, a audiência pela audiência.
Atualmente a produção de conteúdos tem sido muito comum. Como os portais de notícias digitais podem se diferenciar das produções realizadas por pessoas de fora desse âmbito?
Acho que o conteúdo em si já é muito diferente. Não considero que disputamos espaço com essas pessoas. Estamos falando de produção qualificada e de textos jornalísticos. Não são conteúdos que podemos comparar. Acredito que o que determina o interesse de quem está do outro lado é isso. Quem se interessa por ver portais de notícias e quem só vê rede social. Na produção de conteúdo por influenciadores falamos de entretenimento de um modo geral. Quando levamos para o portal, levamos para o jornal, para os veículos, a gente está falando de conteúdo de fato. Ali (os influenciadores) não tem compromisso com a verdade. Não tem compromisso com os fatos reais. Eles tem compromisso com o que estão fazendo, com que pensam, com as ideologias deles, com os valores deles. É muito diferente.
Existe uma grande convergência entre as mídias digitais. Quais as estratégias do Correio Nagô para se manter presente nas mídias disponíveis?
Quando cheguei disse que precisávamos estabelecer metas para crescer o número de seguidores. O Correio Nagô tem poucos seguidores na minha concepção. Mas é difícil. Por mais que a gente pense estratégias, estabeleçamos uma métrica, é muito difícil. É uma linguagem que muda o tempo inteiro. Apesar de serem diversas mídias, usamos efetivamente o Instagram. Mas não é um trabalho fácil lidar com redes sociais. Você vai encontrar jornalistas que gostam de trabalhar com redes sociais e jornalistas que odeiam. Eu estou na coluna do meio. Não odeio, mas também não gosto. Temos que lutar contra os algoritmos. Contra a lógica dos algoritmos que nos prejudicam. Tem uma série de questões para lidar e precisa se atualizar a todo o momento. Todos os dias tem uma ferramenta nova. Todos os dias tem uma forma melhor de publicar. Tentamos criar uma interação maior, mas realmente é uma atividade difícil.
Você acredita que existe um crescimento na cena do jornalismo digital com enfoque em questões étnico raciais na Bahia?
Tem um crescimento significativo. Temos muitos portais negros hoje. Não só na Bahia, no Brasil inteiro. Aqui em Salvador tem o Correio Nagô, Soteropreta. Nacionalmente tem o Mundo Negro, Alma Preta. Temos uma quantidade de portais crescendo. Inclusive portais que surgiram depois do Correio Nagô. Surgem justamente por causa dessa demanda. Se não houvesse, eles não existiriam. Acho que a gente já percebe uma diferença muito grande quando leva para a Globo. Sabemos que a Globo não dá ponto sem nó. Não faz nada que não tenha interesse por trás. Mas quando a gente tem uma equipe diversa, atuamos de forma diferente. Pensando na questão do tapa que ocorreu no Oscar, se você assiste o Fantástico tendo uma mulher negra à frente do programa a linguagem e a abordagem mudam. Não foi para polemizar a atitude do ator e sim para retratar a dor da mulher que perde o cabelo por conta da alopecia. Esse é um retrato do quanto uma equipe diversa faz diferença. Quando conseguimos visualizar e perceber o quanto essa linguagem mudou porque o profissional que está ali tem consciência das pautas sociais.