Amanhã não tem Feira de São Joaquim

Por Anne Carvalho

Posso começar? Certo. 

Sempre odiei ir ao mercado. Sabe, muita gente atrás e à sua frente… Ainda que exista algum tipo de organização nesses lugares, posso dizer que tudo não passa de uma grande e infernal claustrofobia. Ao contrário de mim, Juan sempre adorou os momentos que íamos ali no Atacadão de Pernambués. Mas não havia nada que ele gostasse mais que ir à feira. 

— À Feira. Não menospreze a Feira.

Sim, amor, a Feira. A de São Joaquim. Onde tem de tudo. Mas isso não isenta o lugar da aglomeração que eu sempre odiei, mesmo antes dessa prática ser proibida. Enquanto minha cara automaticamente se fechava quando costumávamos fazer nossas compras mensais na Feira, ele sorria para todas as vendedoras e vendedores que nunca esqueciam seu nome ou seus cabelos compridos. 

— E esse vírus desgraçado precisava arrancar mesmo a benção de ouvir as vozes gentis de seu Pedro e dona Ana me chamando de cabeludo.

Dona Ana e seu Pedro eram a melhor parte de estar naquele lugar. Éramos como os seus filhos, diziam eles. Acho que era por isso que Juan adorava tanto estar em lugares como aquele. Cheios de calor humano, amor, opções… Ele sempre adorou falar com pessoas aleatórias em pé na fila do banco ou do próprio mercado. Sempre amou encarar seus sorrisos espontâneos, o olhar apaixonado entre casais, as expressões diversas… Talvez porque fosse fotógrafo, escritor ou simplesmente um homem apaixonado pela vida.

— O vírus também me privou dessa bênção. As máscaras não nos deixam ver nada além dos olhos. A dor ou a indiferença nos muitos pares de olhos em uma fase tão complicada como essa. 

É verdade. Acho que quando isso tudo começou nunca pensei que parte da sua vivacidade se reduziria, pelo menos, pela metade, amor. Porque tivemos que parar de ir à Feira ou a qualquer mercado quando essa pandemia de COVID-19 começou. E foi por isso que chamei seus melhores amigos, Serena e William, para te confortar. Porque sempre foram eles que te reacenderam nas dificuldades da vida. 

Tive que deixar de lado a vista grossa e engolir as suas presenças, sem máscaras, em nosso apartamento. Sem dizer uma única palavra. Porque eles juraram que estavam seguindo os protocolos de segurança, mantendo-se em casa, tomando cuidado com as compras do maldito mercado e que estávamos entre amigos. “Vamos lá, deixem de besteira. Até porque somos todos saudáveis, se por acaso esse tal COVID se aproximar. Olha a quantidade de anticorpos que tem só no braço de Juan!”, Serena disse e todos eles sorriram. 

Eu me mantive seguro e distante, enquanto os três conversavam próximos demais para acreditar. Me mantive seguro e distante quando as visitas constantes de Serena e William não foram suficientes para manter Juan entretido ou feliz. “Tá tudo bem, Guilherme. A Feira está seguindo todos os protocolos de segurança. Vou ficar bem, prometo”, Juan disse a mim, “Preciso fazer as compras”. 

Eu sempre soube que não era só “fazer as compras”. Ele sentia falta do calor, do apelido dos nossos coroas, daquele amor. De arrumar o cabelo para sair, só para chamar atenção de dona Benedita — ela dizia, sentada de sua cadeira, que estava apaixonada por aquele galã. Mesmo que Juan não pudesse ver seus sorrisos, ainda podia sentir aquelas energias que o abraçavam de longe. “Promete que vai tomar cuidado?”, perguntei. “Sei que vai ser difícil, mas você não pode tirar a máscara. Mantenha distância das pessoas, mas distâncias ainda maiores de quem estiver com o nariz descoberto. As mãos sempre higienizadas e…”, ele me interrompeu: “Eu te amo, Gui… Volto em duas horas.”

Não sei dizer exatamente se foram as visitas de Serena e Will que o fizeram começar com uma gripe; se foram suas idas corriqueiras, em todos os meses de quarentena, à feira lotada de São Joaquim que o fizeram perder o paladar e parar de sentir o cheiro vivo das coisas; se foram os encontros posteriores entre Juan e seus amigos da faculdade nos bares entupidos, que sabe-se lá estavam ou não seguindo os protocolos segurança que o fizeram…

— Você não precisa fazer isso.

Que fizeram o meu marido deitar na cama de um hospital e ficar entubado por alguns dias até… até que o vírus maldito o levou. 

Ele era saudável. Corria cinco vezes por semana. Era vegetariano. Enfim, o homem de ouro. Era o meu homem de ouro. Não o homem de ouro de Deus ou, quem sabe, o do Diabo — como sussurravam quando nos viam de mãos dadas na rua. Juan era meu e passou a não ser mais. 

O coronavírus não o privou apenas dos apelidos carinhosos de seu Pedro e Dona Ana da feira de São Joaquim que ele tanto gostava; ou das visitas que reacendiam a luz que Juan costumava ter; ou a nossa liberdade de ir e vir em segurança. O coronavírus o privou de sorrir, de correr, de cuidar do cabelo, de viver uma vida. Uma vida linda. 

Juan morreu. Morreu porque achou que não poderia viver sem os próprios prazeres da vida. Ele não pôde viver. 

E seis meses depois da sua morte, eu ainda estou em quarentena. A diferença é que escuto o som da voz fantasma do meu marido, sussurrando em meus ouvidos noite e dia. Inundado de nossas mais lindas e aterrorizantes memórias, dou esse depoimento de óbito, em frente a essa câmera de computador, vendo, na televisão ao meu lado, notícias de festas clandestinas, aglomerações na feira, em todo lugar, e… mais mortes. Mas o que vale uma vida para essa gente indiferente? Eu sei o que vale. A morte de quem a gente ama.

Isso é tudo.

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